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Resenha: Amora – Natalia Borges Polesso

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Resenha do livro de contos “Amora” da autorea Natalia Borges Polesso

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Comentários da Lis: 

É difícil falar de um livro de contos porque sempre há os preferidos, os que você acaba esquecendo, os que te emocionam, os que você não gostou tanto assim (ou até desgostou). Talvez seja exatamente essa diversidade que faça de Amora uma obra tão doce: são 33 contos que dão voz às descobertas, medos, tristezas, aflições, dúvidas, crises e também as alegrias, dessas meninas, adolescentes, mulheres e senhoras que descobrem em outras meninas, adolescentes, mulheres e senhoras o que é mais precioso na vida: o amor.

Destaquei abaixo alguns contos que mais me chamaram atenção, que eu mais gostei. Separar alguns foi uma tarefa difícil, primeiro porque eu queria comentar quase todos e depois porque os contos parecem ter uma espécie de costura que os liga uns aos outros, que vai fortalecendo essas histórias, como se cada uma fosse, de fato, uma.

Não desmaia, Eduarda

Esse é o segundo conto do livro e eu gostei por dois motivos: primeiro, por causa das personagens. O desespero da mãe de Eduarda ao saber que ela caiu da escada é até engraçado, as tias que creem no poder da cura da cachaça e que convivem sozinhas com sua mãe sem a presença de uma figura masculina. A própria Eduarda é uma personagem interessantíssima, o que me leva ao segundo ponto: Eduarda cai da escada após ver Mauro e Laura conversando “muito íntimos”, uma semana depois do término delas. Eduarda tem a chance de ouvir Laura, que explica que estava dizendo ao professor que a sua nota boa foi graças a ajuda dela. Eduarda não acredita, manda a ex-namorada ir embora. E assim elas parecem romper definitivamente. Esse mistério sobre a motivação de Eduarda para manter o rompimento é o que mais me chama atenção nesse conto; me parece claro que Eduarda ainda gosta da Laura, então por que? Há algo ali que prova que o amor não basta, algo que é mais valioso e mais profundo, e não necessariamente bom e bonito. Para mim, é algo entre a autossabotagem, a desilusão e a queda, não literal.

Flor, flores, ferro retorcido

Esse conto aparece ainda no começo do livro e é uma gracinha. Eu também não sabia o que significava “machorra” e não fui procurar; em partes porque não gosto de interromper a leitura e em partes porque entendi que essa palavra conduziria a história. A experiência dessa leitura foi fantástica, porque, também sem saber o significado da palavra, eu era aquela curiosa menina de oito anos que não conseguia fazer com que um adulto se importasse o suficiente para explicar, que mesmo a amiguinha de quase a sua idade não tem paciência para fazer. Gosto de histórias se conduzem sob a perspectiva infantil, é como se eu abrisse uma janela que há muito estava fechada e eu pudesse rever uma paisagem muito bonita que até então não sabia que fazia falta. E a Natalia traz isso na narrativa desse conto, esse olhar inocente e deslumbrado para o desconhecido, para o que lhe parece bonito e gentil, tão diferente do turbilhão de omissões e impaciências do mundo conhecido.

Botinas

Esse é um conto poderoso, daqueles que continuam se narrando dentro da leitora e do leitor após o término da leitura, por horas, dias. Há a misteriosa K, cujo passado é uma incógnita apesar de sabermos que algo grave aconteceu (a morte de um colega na faculdade, em defesa própria) e o presente é certo: ela se matou, entupindo-se de remédios. Fran “não queria mais tentar compreender, só tinha essa curiosidade” e parece carregar alguma culpa, além da falta da amiga ou companheira K; não fica muito clara a relação entre as duas mulheres, só que eram íntimas porque conversavam sobre coisas profundas, apesar do desejo de Fran evitar assuntos que pudessem lhe causar um “medo inútil, mais uma angústia para carregar”. O objeto que nomeia o conto é outro elemento potente na narrativa pois preenche automaticamente dois temas que nascem de expressões populares: “bater as botas” que reforça a presença da morte e “calçar os sapatos do outro”, que é o que Fran faz durante o conto inteiro: ela literalmente calça as “botinas apertadas da K” para “procurar algum traço de resposta, indício, sintoma” e não encontra, afundando os pés na lama do cemitério. É uma imagem muito simples e ao mesmo tempo muito bonita; a mim, esse ato também significa uma saudade e um pedido de desculpas.

Minha prima está na cidade 

Esse conto trata com delicadeza da autoaceitação; a narradora explica como enfim percebeu que ela e Bruna formavam uma família e enumera e descreve pequenas coisas cotidianas, principalmente do cuidado com a casa, mas também as negociações e acordos diários, para ilustrar. É lindo – particularmente, em uma leitura, me identifico muito mais com esse tipo de narrativa do que os clichês da estrutura das histórias românticas. Mas entender uma coisa para si é diferente de estar preparada para mostrar ao mundo e é aí que a narradora escorrega: ela convida as colegas de trabalho para uma janta em casa, aproveitando que “a Bruna estava viajando”, porém, ela volta mais cedo e se depara com as visitas, que não sabe que elas são um casal. A narradora explica que Bruna é uma prima e que está na cidade para fazer a prova do ENEM. O que me transbordou o coração de ternura nesse conto foi a calma com que Bruna lidou com a mentira depois, quando conversaram: “só me disse que em algum momento aquilo teria que mudar, riu do absurdo e disse também que a verdade teria sido indolor, talvez, mas não tinha certeza, talvez estivesse errada.” Lidar com carinho, compaixão e compreensão as ações do outro, ainda que erradas, ainda que te machuquem, para mim, é máximo da expressão do amor, da vontade de querer estar junto, do desejo de fazer dar certo. É a coisa mais bonita do mundo.

Marília acorda

“Ali, ali naquela casa, moram duas velhas. Moram ali faz anos essas duas velhas. Acho que essas velhas têm alguma coisa, moram juntas faz anos. Ali na casa das velhas estranhas.”

Outra história doce que enche o coração (e os olhos) com as delicadezas do amor. Aqui, acompanhamos um amor velho e toda a magnificência que advém de um amor velho: é forte, é gentil, é paciente, é protetor, é inquebrável. Marília gosta de rotinas, por isso é curioso que seja descrita com indícios de Alzheimer, e é ela quem cuida da narradora, cujas pernas “perderam a força de um dia para o outro”: leva-lhe café na cama aos domingos, dá banho, etc. Aparentemente elas são muito velhas e a narradora teme a morte, não pela morte em sim, mas porque “eu não vou suportar ficar sozinha, nem ela”. Ela pensa até mesmo em colocar no chá algo que as tranquilizasse, para terem a garantia de irem juntas, mas não tem coragem. Enquanto isso, seguem a rotina.

Amora

“Naqueles oito meses, seu corpo, de torre reta, passava ao de rainha. Dois pequenos montes brotaram em seu peito, como que para proteger seu coração de menina-mulher que se transmutava”

A história que empresta seu nome ao livro, é “quase toda amor” e, na minha opinião, a escolha é mais que perfeita: além da importância óbvia de introduzir na literatura as relações homossexuais entre mulheres, esse livro é sobre o amor e suas belezas e feiuras. Esse conto em específico é sobre a beleza de encontrar em outra pessoa a compreensão, a partilha, o carinho, a admiração, a preocupação, o cuidado. A autora é muito feliz em colaborar com o encontro dessas duas personagens, Amora e Angélica, para descobrirem juntas como é crescer e aprender a se doar a quem está do seu lado. Amei o conto com todo meu coração.

O trecho que destaquei é também outro exemplo da excelência da escrita da Natalia Borges Polesso: como se não bastasse a grandiosidade da história dessas duas meninas, a autora brinca com a temática do xadrez, interesse em comum delas, para construir passagens únicas e de alta carga lírica:

“Ao chegar em casa, despistou pai e mãe e, como um cavalo em L, entrou no banheiro”

“Vozes grossas. Uns potros, outros já cavalos, mas a maior parte ainda era de peões cabeçudos.”

As tias

Separei esse conto não só por sua inegável qualidade literária, mas também pela importância temática que defende. As burocracias do mundo já são pesarosas para as relações historicamente estabelecidas, como o casamento heterossexual, imagino que sejam piores ainda para os relacionamentos homossexuais, sem contar as confusões familiares incendiadas pelos discursos intolerantes e crenças preconceituosas. Achei de uma tristeza sem tamanho a tia Leci não poder visitar a tia Alvina no hospital quando teve um AVC porque os “familiares têm preferência”; no entanto, é a extrema falta de sensibilidade desses familiares em compreender que a tia Leci seria a pessoa que melhor acompanharia a tia Alvina no hospital que traz o gatilho da decisão em formalizar uma união estável (entendo que fosse a única opção à época que se passa a história). A mensagem é clara: casem-se, protejam a si e a pessoa que você mais ama. Obrigada por mais essa mensagem, Natalia!

Molotov

Esse foi um dos contos que mais me angustiou. Acho que pode ser interpretado de forma metafórica também, mas eu interpretei de forma literal. Como característica dos grandes contos, é a presença da história que não se conta que encorpa a agonia: imagino essas duas mulheres que saíram de uma festa e foram para a casa, para um hotel, um motel, e a intolerância alheia metendo uma bomba mortal por sua janela, por sua intimidade, por seus sonhos. E depois? Mortas? Ou “só” destruídas, deformadas, acabadas? Por que razão essas pessoas não conseguem deixar em paz a felicidade do próximo? Não entendo, jamais entenderei, não quero entender. Continuarei a denunciar os atos de desamor, sejam eles quais forem, mas também a exaltar e divulgar as obras como a da Natalia Borges Polesso, de extrema e urgente importância.

Notas sobre o aspecto formal e estilístico da autora

“Além disso, andar sempre me colocava diante de situações como aquelas do casal, andar sempre me dava mais tempo para observar as pessoas, as casas, as ruas, as árvores, as larvas que se amontoavam nas folhas, os carros, suas velocidades, seus motoristas e caronas e ainda a cara que eles penduravam em suas cabeças.”

Adorei conhecer a escrita da Natalia Borges Polesso e digo que merece todo o espaço e reconhecimento a que alcançou; é possível ouvir cada uma das vozes, únicas, de suas personagens em cada um de seus contos e, ainda assim, reconhecer nessa escrita o estilo elegante e seguro da autora. Senti-me conduzida para dentro das narrativas com a autoridade de quem sabe o que faz, sem clichês, sem facilidades, sem subestimar minha inteligência como leitora, pelo contrário: desafiando-me a acompanhá-la, dos temas mais comuns aos mais complexos. Obrigada, Natalia, por compartilhar sua arte conosco!

“Enquanto o ar mexia nos pensamentos que se dispunham no seu peito e na sua cabeça, ela tentava organizar, de alguma maneira que fizesse sentido, os últimos eventos da sua vida.”

Premiações

Jabuti (2016) – Vencedor

Açorianos (2016) – Vencedor

Obras relacionadas & Outras obras da autora 

Todos Nós Adorávamos Caubóis – Carol Bensimon (Compre aqui

Só garotos – Patti Smith (Compre aqui)  

Uma casa no fim do mundo – Michael Cunningham (Compre aqui)

Da autora Natalia Borges Polesso:

Controle (Compre aqui)  

Recortes para álbum de fotografia sem gente (Compre aqui)  

Coração à corda (Compre aqui)  

Leia outras resenhas de livros escritos por brasileiros aqui.

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