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Resenha: Minha Vida de Rata – Joyce Carol Oates

minha vida de rata - joyce carol oates

Resenha do livro Minha vida de rata da autora Joyce Carol Oates.

“Como com qualquer coisa quebrada e em pedaços, você tenta juntar as peças.”

Minha vida de rata – Joyce Carol Oates

É o que Violet Kerrigan, a protagonista, faz durante toda a sua vida.

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Resumo

Iniciamos a leitura conhecendo a caçula da família Kerrigan, que também é a queridinha do papai. Um pai que já no começo se mostra tendencioso à violência e autoritarismo, mas ainda assim um pai amoroso com suas meninas. Esse amor é condicional: os irmãos mais velhos, Jerr e Lionel, protagonizam um hediondo ato de violência, matando um garoto negro, Hadrian Johnson; as investigações já apontam para os irmãos, porém, é o depoimento “involuntário” de uma Violet Kerrigan extremamente estressada – que acabara de sofrer uma tentativa de assassinato de seu próprio irmão, Lionel, há de se destacar – que é decisivo no caso para a condenação dos adolescentes: ela não vira o ato, mas testemunhara os irmãos se livrando da arma do crime, um bastão de beisebol, assim como limpando as manchas de sangue. O pai alega que a sua decepção não fora o que ela dissera, mas sim para quem ela dissera: ele afirma que ela deveria ter resolvido a questão “dentro de casa”. E é para fora dessa casa que Violet é mandada. Primeiro, para um abrigo, depois para a casa de uma tia ansiosa por um amor de filhos, irmã de sua mãe. Como é de se esperar, essa criança, que é a Violet, decepcionada e ainda esperançosa de voltar ao seio da sua família, junto aos pais e aos irmãos, é resistente a esse amor de adultos. A história de Violet, por ser famosa, apesar de nunca ter sido noticiado seu nome, é reconhecida por um professor da escola, que vê em sua vulnerabilidade a oportunidade para abusá-la. Novamente, Violet vê-se sob os holofotes das pessoas que julgam, mas não cuidam das suas crianças. O tio, marido da tia, parece acreditar que, aberto o precedente, também pode tirar a sua lasquinha e passa a ter atos lascivos à presença de Violet. Essa menina, que já é uma mulher, passa então a viver sozinha e cai nas garras de mais um homem: de empregada doméstica à “namorada”, mais uma vez Violet sofre os terrores que é estar a mercê de um mundo que vai te usar de todas as formas se você não tiver os meios para se defender. Felizmente, ela se livra de Metti (o “namorado”) antes que o pior aconteça. Depois da morte do pai, parece haver uma abertura maior para que Violet se reaproxime da família, inclusive do irmão Lionel que foi solto da cadeia, mas nada é como ela imagina: a mãe, doente, tem problemas de memória, não a reconhece, parece estar totalmente desconectada da realidade; o irmão Lionel, de quem ela espera desesperadamente o perdão, tenta matá-la novamente. Após uma frustrada tentativa de visita à Ethel Johnson, mãe de Hadrian Johnson, o rapaz morto por seus irmãos, Violet volta para casa, para Tyrell Jones, seu companheiro, e para Brindle, o cachorrinho que adotou.

Comentários da Lis:

Tenho consciência que esse não é um pequeno resumo e, mesmo assim, oculta muitas partes importantes. Discutir toda a grandiosidade dessa obra em texto resultaria um livro ainda maior, porque, além de tudo o que está escrito, é fantástico o que se pode ler nas linhas, parágrafos e páginas invisíveis dessa obra. Sendo assim, pensei uma forma confortável de fazer isso, dividindo os temas em partes: 

Jerome, Jerr e Lionel 

Os homens da família Kerrigan (Há os dois irmãos menores, mas eles são secundários na história) são característicos por sua violência. Jerome e Jerr, a demonstram com maior sinceridade, são transparentes, é seguro esperar a violência deles, por mais absurda que essa frase possa parecer; já Lionel é um bicho que parece manso e, por isso mesmo, mais perigoso, por que ele vai atacar enquanto o outro estiver desprotegido. Não é à toa que é ele quem empurra Violet para morrer na neve, é ele quem tenta matá-la mais uma vez, é ele quem, de fato, deu o golpe fatal que executou Hadrian Johnson, descobre-se depois. De onde vem essa violência? Jerome pai, um homem bruto, brutalizado em sua própria infância, não pode ensinar aos seus filhos algo diferente do que aprendeu. E seus filhos são tudo o que ele tem: é por isso que, a despeito de serem criminosos, ele vai fazer de tudo, inclusive terminar de desgraçar a família, perder a casa, para tentar colocá-los em liberdade, “provar a inocência” deles. Não é justificável, mas a partir dessa perspectiva se começa a entender a motivação dessas personagens.

“Como uma família é igual a uma árvore gigantesca. Não importa se a árvore está profundamente ferida, começando a morrer e apodrecer, as raízes estão emaranhadas de baixo da terra, impossível de desembaraçar.”

Os tios

Em um primeiro momento, o tio se mostra até mesmo indiferente à presença de Violet na casa; depois do ocorrido com o professor, entende que ele também pode tirar a sua parte. O mais impressionante, para mim, é o que acontece entre tia e sobrinha: em um momento, a tia, aquele ser frágil e carente de amor de prole, se torna uma felina pronta a proteger a cria. No outro, Violet, em um ato auto defensivo ou altruísta, recusa-se a permitir que a tia se separe do marido. A minha dúvida ficou para sempre pendendo entre o psicológico e emocional abalado de Violet, que achava jamais poder (e merecer) ser protegida e/ou amada, e a consciência de que, sendo o tio o provedor da casa, possivelmente esse ato de coragem da tia as jogariam sem piedade na miséria, na fome. Qual das duas foi a corajosa, qual das duas foi a covarde? Talvez ambas, nas duas situações.

“A fraqueza de uma mulher: amar sem questionar. Amar sem duvidar. Amor como o oxigênio que você puxaria por um canudinho quebrado imundo, de joelhos na lama, qualquer coisa para sobreviver porque não consegue viver sem ele.”

Dr. Metti 

Aqui está outro homem que, por sua condição de homem, e branco, age como se espera de um homem branco, dominando e utilizando seu poder agressivamente para o seu próprio bem-estar. Infelizmente para ele, Violet já não é mais uma garotinha indefesa e, apesar de sua posição ainda frágil, consegue se desvencilhar de uma situação que poderia ser fatal para ela. Acho essa parte de extrema importância para o texto; ainda que eu ficasse esperando o pior, porque nessa obra você tem a certeza de que tudo pode piorar, talvez seja aqui que Violet tem esse ímpeto de coragem para dizer “não” e descobre pragmaticamente que alguma coisa pode ser feita. Ela ainda não está preparada, ela ainda não sabe o que tem que ser feito, mas começou a se preparar.

“Pessoas em posições de poder querem que você concorde com elas, não importa o que digam, e isso é tudo que querem – concordância, aquiescência.”

A morte do pai (Jerome) 

Eu queria chamar atenção para essa parte, embora não tenha muitos comentários para fazer. Primeiro, por ser a única parte de todo o livro em que a perspectiva de Violet dá licença a outra; é interessante estar dentro da cabeça desse homem, por mais lamentável que seja essa cabeça, e perceber que ele realmente achava que amava a esposa, mesmo traindo-a várias vezes, tratando-a mal, e que ele se doía mais pela traição dos seus dois filhos por não terem confessado para ele o que fizeram, ao contrário, mentido, do que pelo que tinham de fato feito – “Os filhos haviam feito escolhas imbecis. Foi a bebida a escolha imbecil fatal”. Ele perdoaria os meninos, mas não perdoaria Violet, porque ela não pedira o perdão. Ele amaria Violet somente até quando ela fosse sua bebê Violet Rue; se ela podia fazer escolhas que iam contra o que ele acreditava, não merecia seu amor. 

Depois, esse capítulo merece destaque porque até o fim Jerome ignora o seu próprio racismo; ele morre enquanto garotos negros tentam ajuda-lo, pensando que eles lhe farão mal.

“Se você os ama algo terrível acontece com eles. Apesar de que se você parar de amá-los a dor piora, como um membro removido.”

Violet e Tyrell Jones

A protagonista tem uma complexidade de personalidade que é terrivelmente real.

Primeiro, talvez ainda por ser uma criança, parece ser a única na família que tem a consciência de que os irmãos fizeram algo tão terrível que não possa ser perdoado. Todos os outros familiares, por seus motivos exclusivos, se voltam contra ela. O que ela faz? Espera que lhe perdoem pelo que falou, sem perceber que a condenam como se fosse ela quem tivesse cometido um dos mais hediondos crimes. Violet tem caráter o suficiente para perceber que o que os irmãos fizeram foi errado, porém, ainda não havia desenvolvido a consciência para perceber que ela não deveria desejar o amor de pessoas, ainda que de sua família, que não tivessem esse caráter. A história toda é sobre a negação do fato de não ser amada; precisa tanto desse amor que se autodeclara culpada de algo que nem mesmo sabe o que é, apenas para receber esse amor. 

Depois, Violet espera o perdão de Lionel, por tê-lo denunciado e a Jerr, sem perceber que era ele quem lhe devia o perdão, por ter tentado matá-la. Violet é uma personagem tão carente de amor que o aceitaria mesmo de um irmão assassino, que tentou matá-la!

Não é à toa que ela se afeiçoa a Brindle, o cãozinho da filha do Dr. Metti. Ele é o único ser que corresponde ao seu amor, no início defensivo, exatamente na mesma moeda, senão com mais intensidade. Eles se entendem: são seres que o mundo não entende e se vê no direito de chutar quando não tem serventia alguma.

Tyrell. Ele se apresenta primeiro a uma Violet ainda adolescente, como uma personagem frágil em sua condição de pessoa negra em um ambiente racista, maltratado por um professor de matemática intolerante. Nesta parte, Violet quer compensá-lo escrevendo um bilhete dizendo amá-lo… por que? No final, ela insiste em pensamento: “Eu te amo. Me perdoa. A todos nós… perdoe a todos nós.”. Violet parece ter a consciência e sentir o peso do seu privilégio de pessoa branca. É por isso que ela manda dinheiro para a Ethel, mãe de Hadrian Johnson, o garoto assassinado por seus irmãos? Ela quer recompensá-los, todos eles, de forma a equilibrar a balança, ela quer lhes dizer: eu não sou como eles, eu tenho vergonha do que fizeram. 

Por outro lado, Tyrell não pergunta da vida de Violet. Não sabe nada sobre a família dela. Mas não é desinteresse: ele representa a vida nova, a que não precisa de passado para nascer. Parece fácil, mas não é: fica muito claro que, apesar de não haver indício algum do mal neste relacionamento, ambos foram tão calejados pela maldade alheia que não se entregam completamente, ambos receosos de estarem novamente vulneráveis.

“Felicidade não é confiável. Melancolia é.”

Pessoalmente, prefiro acreditar que eles conseguiram. Eles merecem!

“Amnésia era um bálsamo. A amnésia é o grande bálsamo da vida. Chorei de gratidão por tudo que não lembrava, que era confundido (por quem me observava) com o que eu poderia lembrar.”

Notas sobre o aspecto formal e estilístico da Joyce Carol Oates

Me chamou muito atenção os trechos em que a narradora passa a usar a 2ª pessoa para descrever um acontecimento; do ponto de vista da história, me parece que ela tenta se distanciar do ocorrido, como se fosse tão dolorido que só pode reproduzir contando a história de outra pessoa, que não aconteceu com ela. Do ponto de vista da obra, é fantástico, pois aproxima a pessoa que lê, colocando-a como protagonista.

Outro aspecto da obra que funciona muito bem para manter a pessoa que lê entretida é que a autora começa a narrar um acontecimento e o suspende com um grande parênteses de caráter explicativo para contextualizar; logo, se “esquece” qual era o tema principal e ela o retoma quando se menos espera.

Por fim, a autora tem maneiras muito particulares de descrever e provocar sensações. Pessoalmente, adoro. Compartilho aqui alguns trechos que marquei: 

“Um tipo curioso de paciência autopunitiva”

“Com a dignidade endurecida de alguém que sentia imensa dor”

“Falou com tanta tensão, com o mesmo aperto que um nó teria se falasse.”

“A boca seca, mas não os olhos”

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