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Resenha: Americanah – Chimamanda Ngozi Adichie

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Resenha do livro Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie

“O racismo tem a ver com o poder de um grupo de pessoas e, nos Estados Unidos, são os brancos que têm esse poder.”

Americanah – Chimamanda Ngozi Adichie

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Resumo:

No começo da obra, a pessoa que lê é apresentada a Ifemelu, a protagonista, em uma situação em que vai a um salão de beleza nos Estados Unidos trançar os cabelos. Aos poucos, através das lembranças da própria Ifemelu, vamos conhecendo sua história: ela saiu da Nigéria, seu país natal, há 15 anos, fugida de um regime militar que atrapalhava seus sonhos de estudar. Ela deixa os pais e Obinze, com quem vive uma paixão invejável e sólida, com planos para reencontrá-lo depois. No Estados Unidos, Ifemelu se depara com dificuldades diversas, como arranjar emprego e enfrentar tratamentos diferenciados por ser imigrante e por ser negra. É nesse contexto que se encontra em uma situação que a deixa profundamente deprimida, também envergonhada, o que provoca seu afastamento completo em relação a Obinze, ignorando seus e-mails e ligações. Vivendo da melhor maneira que pode, Ifemelu encontra certo conforto para suas indignações quando começa a compartilhá-las em um blog chamado “Observações Curiosas de uma Negra Não Americana sobre a Questão da Negritude nos Estados Unidos”, onde seus posts sobre o dia a dia dos africanos na América tanto encontram haters quando identificação de tantas outras pessoas negras não americanas. O blog lhe traz estabilidade financeira a ponto de poder trabalhar somente com ele. Também acompanhamos o destino de Obinze, que vai para a Inglaterra, mas não obtém o mesmo sucesso que Ifemelu: com o visto vencido, tenta se casar com uma americana, mas é deportado. É na Nigéria que ele obtém esse sucesso, embora não da maneira que imaginou: enriquece por meio dos negócios imobiliários e casa-se com Kosi, tendo uma filha com ela, Buchi. Na parte final do livro, Ifemelu volta para seu país natal e reencontra Obinze: apesar de tantos anos de afastamento, de experiências tão diferentes, o amor que houve entre os dois não foi esquecido.  

Comentários da Lis: 

No resumo, coloco apenas os pontos centrais da obra, que envolvem as personagens principais, mas a obra é tão grande (e eu não estou falando de quantidade de páginas) que alguns outros aspectos merecem comentários separados:

A tia Uju e o primo Dike

Dike é filho da tia de Ifemelu, Uju. No começo do livro, tia Uju e Ifemelu têm uma relação muito próxima: a tia parece ser uma espécie de modelo para Ifemelu, alguém a quem ela recorre sempre. Quando a tia se envolve com um militar casado e ganha coisas dele (como uma casa para morar), Ifemelu parece discordar dessa situação, mas continua respeitando as escolhas da tia. Tia Uju engravida então de Dike, e logo depois o militar morre, deixando Uju à mercê da fúria da família. Dike é ainda pequeno quando isso acontece, por isso não se lembra de sua pátria: a mãe foge para os Estados Unidos e ele cresce lá, nutrindo-se de outra cultura, que acaba apropriando-se dele. “Meu deus, prima. Nunca vi tanta gente negra ao mesmo tempo!”, Dike constata quando visita a prima em Lagos. Diferente dos amigos de Ifemelu e de Obinze, que se enchem de soberba quando saem da Nigéria e obtém sotaques americanos e ingleses, não há orgulho em Dike, ele aceita o que é porque não sabe que tem possibilidades de ser diferente. Mas ele descobre: acostuma-se rapidamente a ir aos fundos da casa para ligar o gerador quando faltava a luz na casa da prima, queixa-se de que não consegue falar igbo, apesar de entender muito bem. “Eu meio que gosto daqui.”, diz Dike um pouco antes de voltar para casa. Tia Uju, pelo contrário, tendo conhecido a si mesma em território nigeriano, parece murchar em território americano: torna-se mais triste, irritada, preocupada. “Você sabe pelo que ele passou. Não acho que consiga aguentar essa viagem”, tia Uju diz quando Ifemelu pede a ela a visita de Dike, tão diferente das mães nigerianas, que incentivam os filhos a outras experiências, que lançam seus filhos para o mundo – como a mãe de Obinze que o leva como seu assistente para Londres e o deixa lá. Mesmo quando consegue exercer seu sonho da medicina, ainda lhe falta algo. Parece se acalmar, e apenas acalmar, quando repete o comportamento de juntar-se a um homem.

Os namoros de Ifemelu 

“Ela começou a gostar de Curt porque ele gostava dela.”

Ifemelu se comporta diferente em seus relacionamentos: com Obinze ela briga pelo que acha certo, como se só com ele pudesse ser ela mesma. Pessoalmente, não acho que a questão se restrinja ao fato de eles serem “almas gêmeas” como alguma vez é mencionado no livro: acredito que tem mais a ver com o sentimento de equidade, tanto de gênero, quanto de origem.

Curt foi a relação que mais me incomodou; a construção da temática do racismo já estava bastante avançada no momento em que essa personagem aparece e a impressão que eu tinha era a de que esse homem branco e rico estava invadindo alguma coisa. A todo instante eu esperava algum comportamento ou fala racista de Curt, mas a questão se desenvolve de uma forma mais sutil: ele envolve Ifemelu em seu mundo, de forma que ele se transforme no único que ela conhece. “Eu não quero ser fofo. Quero ser a porra do amor da sua vida.” já anuncia para que esse homem veio. Pessoalmente, senti como se ele quisesse exibi-la como algo exótico que ninguém mais tem. O final do relacionamento, claro, tem um desfecho muito coerente com o comportamento e condição de Curt: “Ele é branco?” foi a segunda pergunta que ele fez a Ifemelu quando finalmente acreditou que ela revelava sua traição. Daí por diante, só piora.

Blaine. O relacionamento mais estranho. Eles se conhecem em um trem, ele dá o telefone errado para ela, e voltam a se encontrar depois de algum tempo, quando ele explica que na época em que se conheceram ele estava namorando. A coincidência serve muito bem, toma ares de uma linda história de amor. Blaine é um negro americano inteligente, consciente, tem fibra moral, de certa forma (e da forma certa), ambicioso. No entanto, é dele que Ifemelu mais reclama: não entende e não se encaixa em seu círculo de amigos, que gostam de discutir teorias. “Pelo amor de Deus. Ter uma boa formação não é a mesma coisa que transformar o mundo todo em algo a ser explicado.”, definiria bem o que ela pensa dele. Creio que ele represente as pessoas que precisam estar sempre se provando, mostrando que é mais do que realmente é para ter algum tipo de aprovação de quem admira. Sua irmã, Shan, tem o tipo de comportamento que hipnotiza as pessoas e exerce um forte poder emocional sobre ele, como se ela fosse o modelo a que ele almejasse atingir. As roupas dela “Tinham as características das roupas de um tipo específico de classe média bem informada e de alta escolaridade, que gostava de vestidos que eram mais interessantes do que bonitos, que gostava do que era eclético, que gostava do que supostamente deveria gostar.” Curiosamente, é a personagem de Shan quem, num lapso de consciência, quase uma possessão, tem uma das melhores falas do livro: “E eu pensando: mas por que tenho que transcender a raça? Sabe, como se a questão racial fosse uma bebida que é melhor se for servida diluída, temperada com outros líquidos, ou os brancos não vão conseguir engolir.”

Em conclusão, Blaine é uma boa pessoa, com quem Ifemelu consegue rápida e facilmente fantasiar um futuro; mas é isso, é a segurança da estabilidade de caráter dele, em sua vida conturbada, que a atrai. Desconfio que Ifemelu achasse que ele vacilaria e a deixaria na mão em uma situação complicada por fatores externos. 

“Ele ficaria magoado se soubesse que ela estava se sentindo assim havia algum tempo, que seu relacionamento com ele era como estar satisfeito dentro de uma casa, mas ficar sentado diante da janela olhando para fora o tempo todo.” 

A volta para casa

“Bartholomew não ia à Nigéria fazia anos e talvez precisasse do consolo desses grupos on-line, em que pequenas observações pegavam fogo e se tornavam ataques, com insultos pessoais atirados de ambos os lados. Ifemelu imaginou os envolvidos, nigerianos vivendo em lugares sombrios dos Estados Unidos, com a vida embotada pelo trabalho, guardando com carinho economias durante um ano inteiro para poder passar uma semana na Nigéria em dezembro, aonde chegariam com malas cheias de sapatos, roupas e relógios baratos, e veriam, gravadas nos olhos dos parentes, imagens radiantes de si mesmos. Depois, voltariam para o Estados Unidos para brigar na internet sobre a mitologia que cada um construía de seu país, pois esse país, seu lar, agora era um lugar indistinto entre aqui e lá, e pelo menos on-line podiam ignorar a consciência de quão desimportantes haviam se tornado.”

Nos Estados Unidos Ifemelu descobre que não só a cor da sua da sua pele vai determinar como as outras pessoas irão te tratar e as oportunidades que poderá agarrar, mas também de onde você vem, onde nasceu. De volta para casa, tem que redescobri-la, assim como o seu propósito (o seu blog, por exemplo, já não tem mais razão de ser). Há uma modernização do lugar (todas as pessoas têm celular agora, ela observa) na mesma proporção que parece se desenrolar uma decadência moral: as pessoas, assim como os americanos, principalmente os brancos e ricos, assim como seus conterrâneos que voltam do exterior, passam a se apegar a valores relacionados ao dinheiro e ao luxo, um padrão de vida elevado, um glamour. É por isso que revistas como a Zoe e Glass existiram nesta história, para retratar a vida dessa gente de sucesso e importar o American way of life.

“A melhor coisa dos Estados Unidos é o espaço que o país nos dá. Gosto disso. Gosto do fato de acreditar no sonho. É uma mentira, mas você acredita e é tudo o que importa.”

É por isso que “As Pequenas Redenções de Lagos”, novo blog de Ifemelu, recebeu comentários entusiasmados no post da entrevista com “Madame Priye”, que prestava serviços de decoração para casamento, que incluía fotos da “decoração espalhafatosa” (palavras de Ifemelu) e vários comentários críticos no post que denunciava o Clube Nigerpolita, instituição formada por jovens que passam horas reclamando das diferenças entre Lagos e Nova Iorque. 

É Obinze quem melhor entende essa transformação:

“Quando comecei a trabalhar no setor imobiliário, pensei na hipótese de reformar casas velhas em vez de demoli-las, mas não fazia sentido. Os nigerianos não compram casas porque elas são antigas. Como um celeiro de moinho reformado de duzentos anos, sabe, o tipo de coisa da qual os europeus gostam. Isso não funciona aqui de jeito nenhum. Mas é claro que isso faz sentido, porque somos do Terceiro Mundo, e pessoas do Terceiro Mundo olham para a frente, nós gostamos que as coisas sejam novas, porque o que temos de melhor ainda está por vir, enquanto no Ocidente o melhor já passou, então eles têm de transformar esse passado num fetiche.”

A segunda relação com Obinze 

Ifemelu escreve no blog sobre as mulheres com Fontes Desconhecidas de Riqueza, criticando as jovens que têm a vida desgraçada por homens casados que fornecem recursos tais como casa (tia Uju), carros (Ranyinudo), tornando-as dependentes, sem jamais construírem uma vida de verdade com elas. Rayinudo inclusive chega a brigar com ela, acusando-a de não olhar o próprio umbigo, pois estivera em uma situação bastante semelhante nos EUA com Curt. Deve ser por isso que quando Ifemelu e Obinze estão mais uma vez juntos, ela se incomoda com o fato de ele estar casado, apesar de não passar pela sua cabeça cobrá-lo de alguma coisa, mesmo que não haja a questão financeira; ela parece entender, enfim, que a desgraça não se dá pela perda da fonte de dinheiro, mas a falta do amor que deixam de ter, e escolhe por si mesma não prolongar a situação. Tudo o que ela quer é a liberdade de ser. Se houver o amor envolvido, melhor. 

Notas sobre o aspecto formal e estilístico da autora

Eu achei o livro muito bem escrito. A autora se vale de uma linguagem simples, sem rebuscamento, para propor assuntos de importância indiscutível. Duas coisas me deixaram espantada, no bom sentido: a primeira é que Ifemelu passa metade do livro em um salão de beleza, quando faz a trança nos cabelos antes de voltar para a Nigéria; é ali que a personagem relembra tudo que aconteceu com ela até ali. O impressionante é que a leitora ou leitor esquece onde está a protagonista no tempo presente e a autora conduz esse aspecto da narrativa tão bem que, quando retoma, não há nenhum estranhamento, pelo contrário, há deslumbramento e admiração. Não sei se foi intencional, mas achei delicioso esse fato mimetizar o tempo necessário para trançar o cabelo: é tão longo que há espaço para lembrar de toda uma vida. Há de se destacar também o simbolismo dessa situação: prestes a voltar ao seu país, em um contexto de retomada de um costume de seu povo, Ifemelu coloca um ponto final na sua história americana, como se vestisse novamente a sua “identidade nigeriana”. A temática do cabelo nessa obra surge diversas vezes, como quando Ifemelu o alisa para conseguir um emprego (e ganha uma ferida horrível no couro queimado), ou quando o primo Dike faz um comentário de estranhamento, mais uma vez ajudando a construir a personalidade distinta dessa personagem. Para mim, essas construções têm ainda mais poder na narrativa do que a escolha consciente de Ifemelu sobre o seu sotaque, porque mostra que a questão da identidade é importante, mas que as personagens às vezes nem se dão conta (como acontece com as pessoas reais).

Outro aspecto que eu achei interessantíssimo foi o blog; ao invés de carregar a obra ficcional com situações críticas (não é que não estejam presentes), a autora opta por usar esse recurso que permite esse conteúdo mais ensaístico no meio da obra. Creio que são textos que a própria autora poderia ter publicado em um blog, dada a sua própria história. E eles são fantásticos, tão sarcásticos, contundentes, diferenciam-se da linguagem tranquila e o tom quase carinhoso de toda a obra, e, por isso, se destacam.

Referências que aparecem no livro:

O cerne da questão – Graham Greene

“Eles dizem que o dia do teste do saco de papel já passou (façam uma pesquisa sobre isso)”

Don’t Let Me Be Misunderstood – Nina Simone

A origem dos meus sonhos – Barack Obama 

Dereck Walcott 

Yori Yori – Bracket 

Obi Mu O – Obiora Obiwon 

Outras referências de leitura cujos temas têm proximidade com essa obra:

Hibisco roxo – Chimamanda Ngozi Adichie (Compre aqui)

Tudo de bom vai acontecer – Sefi Atta (Compre aqui)  

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Leia resenhas de outros livros com o mesmo tema aqui.

Premiações

New York Times Book Review (2013)
National Book Critics Circle Award (2013)
Chicago Tribune (2013)
Baileys Women’s Prize for Fiction (2014) – Indicação

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