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Resenha: O livro de Líbero – Alfredo Nugent Setubal

o livro de líbero - alfredo nugent setubal

Resenha do livro “O livro de Líbero” de Alfredo Nugent Setubal

“Somos paridos de nossas mães e caímos de bunda em um lugar muito vasto e confuso chamado mundo, onde nada faz sentido, cercados de pessoas tão perdidas quanto nós, e crescemos e saímos por aí tentando entender, aprender, tentando tirar uma canção de toda essa cacofonia, em busca de algo pra nos salvar.” 

O livro de Líbero – Alfredo Nugent Setubal

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Já encontrou o que vai te salvar?

Resumo

O livro se divide em duas partes: na primeira, Baltazar, integrante do circo que chega a Pausado, diz a pessoa que lê que ofereceu o livro da vida de Líbero a ele e começa a lê-lo, para explicar como a história chegou até aquele momento, que tanto teme. Então a leitura explica que Líbero é filho de Massimo e Dona Norma, dono da Gazeta, único jornal da pequena cidade chamada Pausado, e dona do lar da família Perim, respectivamente. Líbero trabalha com o pai e um outro funcionário, Rubio, no jornal da cidade e é enviado pelo pai a fazer uma pesquisa de campo para a reportagem sobre o circo. Lá em cima na colina, talvez morro, onde o circo se instalava, Líbero conhece o caos e a confusão de um circo ainda não funcionando e o dono, Lourival Sibelius, que conta a ele com detalhes tudo o que aconteceria no show; Líbero já havia sido advertido pelo seu pai, em ocasião anterior, quando ele leu o último capítulo de um livro sem passar por todo seu miolo: a graça de uma história está no virar de suas páginas, na experiência de descobrir pouco a pouco a mensagem. Mas sua curiosidade venceu e ele escutou. Naquela noite, eles, Líbero, pai e mãe, vão assistir ao espetáculo e Líbero encara duas decepções: Nanza, a colega por quem nutre sentimentos e havia combinado de ser sua companhia aquela noite está com Marco, seu amigo; em contrapartida, o show não é uma novidade, porque Lourival havia detalhado demais o que aconteceria. Líbero sai da tenda e acaba se deparando com Baltazar, que lhe oferece o livro de sua vida. Ele recusa, lembrando-se da advertência de seu pai, e da decepção que teve sobre o espetáculo.

Na segunda parte do livro acompanhamos o que aconteceu sob a perspectiva de Rubio. Descobrimos que Pausado foi abandonada aos poucos pelos seus habitantes, sobrando apenas ele mesmo, que se auto incumbe a tarefa de cuidar da cidade, reformando as casas. Em um dia, Rubio se depara com Líbero, que havia deixado a cidade há 23 anos. A partir de então, ele nos conta o que aconteceu antes da partida de Líbero: sua lenta e visível apatia, seu desinteresse por livros, tão caros para ele anteriormente, a decepção com Nanza que se enamorava de Marco, etc. Também descobrimos um pouco mais sobre a própria história, porque não gostava de circos: a mãe morrera em um incêndio em um. No presente, ele e Líbero têm alguns desentendimentos, em partes porque Líbero já não se parece a mesma pessoa; eles acabam trabalhando juntos em algumas reformas. No final, Líbero recupera o desejo antigo do pai (Massimo) montando uma biblioteca inusitada na igreja da cidade: ela também contém as várias fotografias que Líbero trouxe para Pausado em uma mala, que são milhares de retratos de pessoas.

Comentários da Lis: 

As ideias deste livro são, da maneira certa, perturbadoras.

Primeiro: todos nós temos um destino certo e tudo o que fazemos, mesmo quando tentamos escapar dele, nos leva a ele ou temos controle total sobre ele? Líbero parecia achar que havia só um caminho e que o tempo se encarregaria de mostrá-lo; quando percebe que não há só um caminho e que ele muda de acordo com suas escolhas, perde-se, porque é muito mais confortável a ideia de que não somos os únicos responsáveis por nossas vidas. Se algo não corresponde às expectativas, não foi culpa nossa, foi o destino, temos algo a que depositar a culpa, o fracasso não nos pertence. Assim, a gente é livre, consegue viver em paz. Neste livro, me parece que Massimo e D. Norma viviam sob essa perspectiva, mesmo sem ter um livro de suas vidas em suas mãos (ou a possibilidade de). Já Rubio, parece ter consciência do peso de suas escolhas.

“A liberdade é um vazio assustador, um fardo que pouquíssimos estão dispostos a carregar.”

Depois: saber de algo bom antes de acontecer lhe daria mais ímpeto para seguir em frente, mais certeza? Saber de algo ruim antes de acontecer lhe daria o impulso para impedir, ou até mesmo a calma para se conformar sem grandes transtornos? “Só por meio do livro podia ser verdadeiramente livre, fazendo cada escolha consciente das consequências”. É por isso que a advertência de Massimo, sobre a “graça dos livros estava justamente em descobrir o final no virar de cada página, no viver de cada capítulo” é uma alegoria fantástica para a vida. Fantasia à parte, a longo prazo é impossível saber para onde uma vida se encaminhará: objetivos servem para serem alcançados (final do livro), mas a vida que tem finalidade em um objetivo e não é experienciada “capítulo a capítulo” não tem graça, como no espetáculo do circo, em que Líbero sabe exatamente o que vai acontecer antes que aconteça. Talvez, se jamais tivesse sido oferecido a Líbero a possibilidade de saber o capítulo final de sua vida, ele tivesse vivido como qualquer outra pessoa, sem esse abalo profundo que o tirou do eixo; seria preciso ter muita consciência, muita sabedoria para ter a oportunidade de saber o seu próprio futuro e recusar; mais ainda para lidar com as dificuldades da vida sabendo que teve a chance de evitá-las, planejá-las, se preparar para elas, etc. Mas Líbero era apenas uma criança e as dificuldades tiveram mais peso para ele, então: se ele soubesse que Nanza apareceria acompanhada de Marco em sua festa de aniversário, poderia ter poupado expectativas e energia na arrumação, não? Sem falar da decepção…

“A vida é uma sequência de aleatoriedades frágeis, pequenas sincronicidades que ocorreram, mas que poderiam muito bem não ter ocorrido.”

Líbero ganha um livro vermelho, que se parece com o livro de sua vida, mas é só um diário. Nas palavras de Baltazar: “É você quem escreve o livro. É só uma questão, digamos assim, de ter coragem para usar a caneta.”. E aí você se pergunta: qual é a do livro, afinal? Mais uma vez, o autor brilhantemente reforça a ideia da coragem de assumir as consequências de suas escolhas; o livro, portanto, nada mais seria que a materialização da crença da linha única do destino, o ato de covardia que a maioria das pessoas abraça desde que começa a viver. O problema é que Líbero não entende isso quando escolhe não ler o livro de sua vida; tudo o que ele “perde” (segundo Baltazar) não é consequência da sua recusa em ler, mas um arrependimento tão profundo, ou ansiedade, ou depressão, ou tudo junto, que o impede de alcançar o que sempre foi possível, com ou sem livro.

“Que liberdade é essa, que mais toma do que dá?”

Líbero se torna fotógrafo e, por algum motivo que não fica claro na obra (e podemos deliciosamente imaginar), retorna a Pausado com uma mala abarrotada de retratos em preto em branco, com milhares de rostos. Fiquei pensando se com essas fotos ele achava que de alguma forma poderia roubar a histórias dessas pessoas, já que a sua considerava perdida para sempre – fazendo um paralelo à crença antiga de que a fotografia roubava as almas das pessoas, assim faz Líbero, uma vez que teve a sua roubada por um livro vermelho. Não é à toa que no final ele constrói uma biblioteca com os livros de seu pai na igreja, que se torna duplamente um lugar sagrado, e as fotografias ajudam a compor o que eu só posso imaginar uma magnífica obra de arte. E ele diz a Rubio que está reescrevendo sua história. Retomando o trecho que destaquei no início desse texto, me parece que enfim Líbero reencontra sua história (salvação) por meio da expressão artística – há frequentes episódios em que ele, inclusive, parece acreditar viver as aventuras dos livros que lê, confundindo o amigo Rubio com personagens. 

Notas sobre o aspecto formal e estilístico do Alfredo Nugent Setubal em O Livro de Líbero

O livro é curto, tem 254 páginas na primeira edição, e mesmo assim, as personagens são muito bem desenvolvidas. D. Norma, por exemplo, é muito bem definida logo que aparece na história: uma mãe carinhosa e preocupada, consciente da imensidão do mundo, e por isso prefere que seu filho escolha permanecer na segurança da cidadezinha, ao alcance de onde sua vista poderá protegê-lo. A família, é feliz e somente um abalo exterior causará um conflito em seu seio. Fiquei intrigadíssima com Rubio e, apesar de a história dele, do porque de todo seu mistério, do seu chapéu, ser clarificada ao longo do texto, continuei achando que fosse o personagem mais instigante do livro.

Gostei bastante também do fato do autor não hesitar em usar palavras “feias”: “bunda”, “patavinas” e palavrões. Essas palavras provocam a sensação de que alguém está contanto (verbalmente) essa história e aproxima a experiência da pessoa que lê com o texto. Inclusive, os diálogos são muito bem construídos: não há a artificialidade formal que outros autores optam, há uma preferência em proporcionar a verossimilhança a seguir à norma.

Por fim, achei interessantíssima a escolha do nome da cidade, Pausado. É perfeito por motivos diversos; em um momento, é uma pequena cidade em que pouco acontece, em outro, é uma cidade fantasma com um único inquilino que se esforça em mantê-la como sempre foi, correndo contra o tempo que a transforma sem cessar e finalmente vai ganhar quando esse homem (Rubio) morrer. Só restarão os postais – as fotografias que capturaram a alma da cidade.

Deixo aqui alguns trechos que me foram especiais, por suas construções singulares. 

“Pavor pelo mundo que não cabia em suas pupilas”

“os dois se encarando como pistoleiros, o silêncio eletrocutando nossos ouvidos.”

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Outras referências cujos temas têm proximidade com essa obra:

A história sem fim – Michael Ende (Compre aqui

As visões da Raven (seriado)

Doutor Estranho (filme)

Questão de tempo (filme)

“O livro de Líbero” de Alfredo Nugent Setubal, está disponível para compra aqui

Leia mais resenhas de livros escritos por brasileiros aqui.

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