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Resenha: Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra – Mia Couto

um rio chamado tempo uma casa chamada terra - mia couto

Resenha do livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” de Mia Couto

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Resumo:

A narrativa começa com Marianinho, protagonista dessa história, dentro de um barco, voltando para a ilha de Luar-do-Chão, onde conhece Miserinha, uma senhora que não enxerga cores – que se descobrirá depois que um “acidente” na verdade lhe tirou a visão, só vê vultos e sombras, e é sua aparentada, mulher do irmão da avó. Ele fora buscado por seu tio Abstinêncio, que lhe explica que o avô, Dito Mariano, falecera e que ele fora o nomeado para fazer as honras do rito do enterro. Ao chegar na ilha, o leitor e a leitora são apresentados para a família de Marianinho: seu pai, Fulano Malta, irmão de Abstinêncio e do caçula Ultímio, sua avó Dulcineusa e sua tia Admirança, entre outros aparentados sem nome que lotam a casa. Logo o primeiro contato com a irrealidade: não se pode ter certeza que o avô está, de fato, morto. A partir de então, vários acontecimentos se sucedem: a avó tenta seduzir o suspeito de morto para fazê-lo acordar, Marianinho é atacado sexualmente por uma mulher que não consegue reconhecer no escuro do sótão, ele começa a receber cartas anônimas que, descobre depois, são de seu avô, escritas por seu próprio punho; essas cartas vão guiando Marianinho pela descoberta de alguns mistérios: o Seu Juca Sabão, ao que tudo indica, foi morto pelos filhos de Ultímio por causa do sumiço de umas sacas de drogas que o coitado achou ser fertilizante e a arma do crime, que pertencia a Fulano Malta, foi vendida aos rapazes pelo próprio pai Dito Mariano. Também vai se revelando a história da mãe de Marianinho, a Mariavilhosa: ela conhece Fulano Malta na casa do doutor Mascarenhas, com quem ela fazia um tratamento por ter forçado um aborto, uma gravidez originada de um estupro, cujo autor foi o próprio padrinho de Marianinho, Frederico Lopes, português casado com Dona Conceição, que mantém a foto de Mariavilhosa na cabeceira do casal, para lembrar o marido do que fez. Quando Marianinho já é nascido, Mariavilhosa engravida de novo, mas tem um aborto espontâneo, o que parece ser o gatilho que a leva ao suicídio, lançando-se ao rio. Antes de se revelar o segredo final, descobre-se que a terra se fechou: o coveiro não consegue escavar a terra para descer o caixão do falecido, e isso não ocorre só em Luar-do-Chão, mas é um fenômeno mundial. Por fim, Dito Mariano é enterrado no leito do rio, sem cerimônias, e a terra volta a se abrir. No final, descobre-se que Marianinho não é filho de Fulano Malta e Mariavilhosa, mas sim de quem ele achava ser seu avô, Dito Mariano, e sua tia, Admirança. O avô era muito mulherengo, fazia amor com várias mulheres (embora não dormia com elas), sendo uma das suas amantes a Miserinha, mas Admirança foi seu grande amor.

Comentários da Lis: 

Este resumo serve mais para lembrar a pessoa que lê dos elementos mais importantes do texto, descritos até meio fora de ordem, para ficar mais coerente. Acredito que essa obra é muito menos sobre acontecimentos do que outra coisa, um sentimento, uma poesia. É também cheia de nuances, um tanto obscura e misteriosa, creio que uma segunda leitura vá me ajudar a desvendar melhor os segredos. Apesar disso, deixo aqui minhas impressões sobre alguns elementos específicos: 

Os nomes das personagens

“Abstinêncio era magro por timidez: para ser menos visto.”

Achei o nome de algumas personagens de uma delicadeza sem tamanho, porque já diz muito sobre a personagem. E até o fato de algumas personagens terem nomes “mais normais” também diz muito da história, como se pertencessem a universos diferentes.

Abstinêncio, por exemplo, além de ser “magro por timidez”, também tem uma personalidade contida que, descobrimos depois, não é por falta, mas por excesso de algo. Tenho dúvidas se posso afirmar que é sobre o amor, em específico em razão do caso que ele tem com Dona Conceição, mas com certeza isso influencia muito. Acho que tem a ver com a vontade de ser mais, que não consegue, exemplificado na inveja que sente de Fulano Malta, por ter ido lutar pelo que acreditava.

Aí há Fulano Malta, que já me “incomoda” por esse segundo nome que parece um sobrenome (e não é?) e o destaca dos dois irmãos. Curiosamente, “Fulano” o coloca em uma posição sem destaque nenhum, é alguém que não se identifica, que poderia ser qualquer um, inclusive “Ciclano” e “Beltrano”. Talvez a questão mais relevante em relação a essa personagem e seu nome seja o fato de ela ser um ex-guerrilheiro que lutou na guerra contra o colonialismo, como tantos outros fulanos. No entanto, ele se recusa a festejar com os outros; diferente deles, parece saber que não é uma comemoração genuína. Talvez por isso que ele seja Fulano Malta, não só Fulano.

Ultímio. Vai bem mais além do que ser o filho caçula – como se prova errado depois. É o filho que se propõe ser o primeiro da linhagem de Marianos que nega suas origens: ele é rico, bem sucedido, o único da ilha que tem um carro, ele quer vender a casa de sua família, justificando o progresso, o assassino das tradições do povo de Luar-do-Chão. É ele que reforça o contexto político da história (contrapondo-o ao que já trazia Fulano Malta), que o coloca de maneira sutil, nada panfletária, que a leitora e o leitor acabam absorvendo de maneira intuitiva.

Temos Dito Mariano, o dito, o motivo dessa história. Há Admirança, meia-irmã mais nova da avó Dulcineusa, descrita como uma mulher voluptuosa, que chama atenção. Também aparece Mariavilhosa, mulher descrita como “linda”, enfim, maravilhosa. Por fim, temos Miserinha, cujo nome não se revela; é um apelido, o que também tem um simbolismo muito forte: era amante de Dito Mariano, e, ao que tudo indica, apaixonada por ele, que acaba na miséria por causa dessa relação. Ela não tem um papel tão significante na rede de segredos da família, mas é sugada para o meio das personagens que compõem essa confusão, tão sem intenção como seu apelido, Miserinha, pelo qual passa a ser conhecida.

O rio chamado tempo

“Mais afiada que lâmina a vida decepara os laços dos nossos destinos. O tempo, depois, tem ilusões de costureiro.” 

Particularmente, não gosto de “explicar” os títulos de uma obra que propõem uma metáfora, acredito que acaba sendo algo muito pessoal tanto para o autor e para a autora, quanto para a leitora e o leitor, é como se, ao discutir, perdesse o aspecto sagrado. No entanto, essa é uma imagem muito poderosa, a do rio como o tempo e, na história, ele aparece como um personagem também, cujos “atos” têm grande importância para os desfechos, então quis deixar alguns comentários sobre isso, a fim de enaltecer essa escolha do autor.

Não foi por acaso que escolhi citação acima para ilustrar esse tema. É muito viva a imagem das águas de um rio correndo impetuosas independente do que há em seu caminho. Assim como o tempo, é algo que não se pode parar. Assim como o tempo, é algo que se pode iludir na suspenção por algum período (como barragens), mas que sempre vai cobrar o preço justo.

Na história, o rio, ou o tempo, aparece na forma de destruição tanto quanto na de criação, vida: é ele que naufraga a embarcação cujo único sobrevivente é um burro que nunca mais sai da igreja (esse é um elemento da história que não consegui entender nessa primeira leitura), é ele quem leva Mariavilhosa embora. Mas também é ele quem leva Mariavilhosa até Luar-de-Chão, é ele quem boia os livros, atirados por Fulano Malta, e a arma, atirada por Dito Mariano, como um lembrete das consequências de seus atos, é ele quem recebe o corpo de Dito Mariano, quando a terra não mais o queria.

A casa chamada terra

“Todos aqui estão morrendo não por doença, mas por desmérito do viver.”

Da mesma forma que o rio empresta sua imagem ao tempo, aqui, a terra e a casa se confundem. Pode-se ler a casa no sentido de “lar”, “habitação” e ainda de uma forma mais metafórica, que também significam isso, mas de maneira mais profunda: do pó viemos, ao pó voltaremos. A terra como casa, o lugar para onde retornamos, não importa onde (temporariamente) estivemos. Essa mensagem, nesta obra, também é bastante integradora de natureza e homem, que frequentemente esquece que não está acima de tudo e de todos, natureza, animais ou outras pessoas (também animais, lembremos!). Não é à toa que a terra se fecha à pá do coveiro: se o homem não é digno de sua vida, não o é também de sua morte. Permanecerá “portador assintomático de vida”, podendo apenas ser emitida uma “incertidão de óbito” (destaques retirados da obra). 

Voltando um pouco à imagem da casa, temos também um costume: na sala onde se vela o morto, o telhado da casa é retirado. Mais uma vez, essa tradição reforça a ideia do homem que deve ser reintegrado ao que é natural: esta casa, este teto, é artificial, feito pelas mãos do homem, mãos que agora jazem paradas ao lado de um corpo frio sem poder realizar mais nada.

As cartas de Édipo

As cartas são outro elemento interessantíssimo do texto. Logo quando aparecem, Marianinho já reconhece a própria caligrafia. Não fica claro no começo se ele entende imediatamente que é ele mesmo quem as escreve ou se é alguém imitando, porém, o autor das cartas não demora a se manifestar: é o Dito Mariano, o avô, o morto. No começo, entendi que se tratasse de simples psicografia, já que alguns fatos, pela idade e pela ausência de Marianinho na ilha, não pudessem ser sua ciência, e que, provando-se verdade em conversa com terceiros, não poderiam ser invenções de um criativo (muito provável doente também) subconsciente. No entanto, essa ideia me pareceu cada vez mais sedutora, um caso de sonambulismo em que Marianinho colocasse no papel, por falta de matéria de sonho, essas histórias sobre a sua família e a sua terra, como se fosse o próprio avô, para não assustar o consciente com fatos que ele mesmo não poderia lidar. As duas leituras são possíveis: de um lado, o contexto fantástico da obra não deixa dúvidas de que Dito Mariano seria capaz de guiar a mão do neto para o fim de escrever cartas, por outro, temos uma mente extremamente analítica e observadora que junta os pedacinhos de informações que obtém de conversas com cada personagem e chega à conclusão de sua vida: ele não é filho de quem acha que é. Imagino que o impacto maior para Marianinho e sua sanidade psicológica seja o fato de que ele é filho de Admirança, a tia-avó por quem ele tem desejos sexuais. Freud explica (mesmo!).

Notas sobre o aspecto formal e estilístico de Mia Couto

“O ar é uma pele, feita de poros por onde escoa a luz, gota por gota, como um suor solar.”

Apaixonei-me instantaneamente pela escrita de Mia Couto logo no primeiro conto do livro “O fio das missangas”, chamado “As três irmãs”, por causa das moças que “se esqueceram até do sotaque de outros pensamentos.” Logo no primeiro parágrafo. E o amor foi crescendo. Peguei “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” para tirar a prova do que eu já intuía (não deixo nunca de duvidar): “O fio das missangas” não foi um eventual sopro de inspiração divina do autor, a escrita dele é mesmo esse amor todo em forma de letras. É incrível o trabalho que Mia faz com sua prosa: ela tem as rimas da poesia, a melodia da música, o impacto da fantasia, o poder da alegoria. Inspira-me muito. Este é o segundo livro que leio do autor e só deixa a desejar uma coisa: mais da escrita dele.

Obra relacionada e outras obras do autor

Às vezes eu deixo nessa seção apenas um link da obra de outro autor ou autora que conversam com a obra resenhada. No entanto, essa em específico, acho que merece um comentário: 

Essa obra é muito única, fato. Porém, alguns aspectos dessa história, muito além dos aspectos fantásticos, me lembraram “Cem anos de Solidão” de Gabriel García Márquez. Há certa proximidade de personagens, como Fulano Malta e Coronel Aureliano, envolvidos com questões políticas e guerras, Dito Mariano e José Arcádio, o pai da família que se recusa a morrer, mesmo estando morto, Mariavilhosa e Remédios Moscote, mulheres muito bonitas que morreram muito antes de seu tempo, Admirança que tantas vezes me lembrou Amaranta (a noiva preterida, jamais casada) ou Pilar Ternera, a mãe de filhos que não pôde amar como tal. Além disso, Luar-de-Chão e Macondo me pareceram personagens com personalidades até que distintas, porém, da mesma forma importantes para a história, da mesma forma intrigantes e sedutoras. Acredito que ambas as histórias não teriam se desenrolado da maneira que se desenrolaram se não tivessem palco nesses lugares, ou que não pudessem atuar. Por fim, o sentimento. Ambas as obras me falaram sobre a pequenez de uma vida humana, sua fragilidade e efemeridade, a insignificância dos atos particulares de um indivíduo, e, pelo contrário, a perenidade e constante transformação dos lugares.

“No charco onde a noite se espelha, o sapo acredita voar entre as estrelas.” 

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O fio das missangas – Mia Couto (Compre aqui

Terra sonâmbula – Mia Couto (Compre aqui

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Leia resenhas de outros livros de Mia Couto aqui.

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1 comentário em “Resenha: Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra – Mia Couto”

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