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Resenha: Mate-me quando quiser – Anita Deak

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Resenha do livro “Mate-me quando quiser” de Anita Deak.

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Comentários da Lis: 

De tanto consumir histórias, me tornei uma leitora exigente. Frequentemente leio obras que considero perfeitas e grandiosas, porém, há tempos que um livro não me despertava a emoção agitada de me tirar do eixo. “Mate-me quando quiser” me causou isso. Destaquei alguns pontos que me surpreenderam abaixo, embora não sejam só esses.

O ânimo da história

“Nada lhe minava a crença de que existe o tempo certo tanto para perder quanto para ganhar. Apenas não havia chegado a hora feliz ainda.”

Li o título do livro e a sinopse e logo a primeira pergunta já pipocou na cabeça: Por que essa mulher quer morrer? Pensei que seria um livro pesado, afinal, a morte é sempre pesada. A leitura me surpreendeu em vários aspectos, inclusive ao me mostrar que a resposta para a minha pergunta é de uma importância quase secundária.

O começo do livro é despretensioso. Aos poucos, a autora encaminha o foco da curiosidade do leitor sobre a Mulher e seu matador para outras três personagens: o Homem, a Morena e a Loira. De vez enquanto, somos relembrados do “objetivo principal” daquelas linhas escritas, mas o “estrago” já está feito: queremos saber mais daquele Homem e suas esposas e filhos. 

Em paralelo, há as conclusões atrapalhadas do matador Soares sobre os fatos que envolvem as demais personagens. Para mim, esse é um dos pontos cruciais dea obra, porque distrai o leitor do mal estar que acompanha as temáticas de morte e traição. Essas confusões são muito divertidas para o leitor, que tem consciência o tempo todo o que está acontecendo, e é uma espécie de válvula de escape para o que é sério e pesado.

Por tudo isso e mais um pouco, sem perceber, progressivamente, o leitor se esquece da proposta inicial da história. Então, de repente, sem aviso, sem camaradagem nenhuma, a autora nos lembra: alguém vai morrer nessa história. E não é de maneira alguma da forma que pudéssemos prever. A Anita nos conduz para um salto de paraquedas, pessoalmente ajusta o equipamento para nós, nos tranquiliza; pulamos com um sorriso, felizes e confortáveis, para perceber muito tarde que o equipamento não funciona. Que desespero!

Ninguém gosta de ser enganado. Um leitor ludibriado é quase um inimigo. Porém, nesta obra a autora obtém muito sucesso. É a única maneira de enganar alguém e fazê-lo feliz.

Os sobreviventes

“Da primeira vez que esteve em Barcelona, muito antes de ser danificada pelo tempo, expirou de volta o sol queimado nas esquinas e teve a sensação de que poderia ser feliz ali eternamente, debaixo da sombra de um ponto de ônibus.”

A Mulher queria morrer e contratou Soares para fazer o serviço. Por uma série de (deliciosas) coincidências, outras personagens são atraídas para o centro desse conflito muito bem estabelecido e expõem os seus próprios conflitos, recheando uma obra que, numa primeira impressão, parecia simples de ser resolvida, modificando permanentemente o seu final. A Mulher, quem deveria morrer, é uma das poucas sobreviventes dessa história; o que parecia, para ela, uma forma de ocupar-se do tempo enquanto Soares se preparava para o serviço, acaba por desenrolar o destino de outras personagens e mudar o seu próprio, garantindo sua sobrevivência. Por outro lado, a Loira, a Morena (e seu menino), que tudo tinham para continuar existindo, encontram seu fim de forma trágica – particularmente, me partiu o coração que essas personagens se tornassem ferramentas para a “lição” que o Homem precisava aprender e para que a Mulher pudesse valorizar a própria vida. Por fim, o matador, quem deveria matar, é “matado”. Isso é mágico de diversos ângulos; também porque impõe a moral de que aquele que faz o mal não acaba bem, mas por toda a ironia do fato.

Esse final somado a toda a construção inteligentíssima que a autora faz da história, fazem de “Mate-me quando quiser” uma obra magnífica.

A ironia das identidades

“Pois não ouvimos o que o outro diz, mas o que queremos. O que sabemos do outro é apenas a intersecção do que compreendemos em nós mesmos.”

Arrisco dizer que foi uma escolha bastante consciente da autora não nomear a maioria das personagens da história. Exceto Mário, garçom do restaurante que a Mulher e o Homem frequentam, o Soares e a mãe do Homem, dona Alynka, ninguém mais possui nome próprio, são identificados por características bastante genéricas.  

O curioso disso está no fato de que Soares, por sua condição de matador, portanto, fora da lei, deveria ser a personagem de identidade oculta. Achei essa “inversão” muito interessante, me causou a sensação de conhecê-lo melhor do que às outras personagens, o que não é necessariamente uma verdade. O recurso também causa um efeito de solidez na personagem de Soares, diferente das outras, que se poderiam ser quaisquer Homens, Mulheres, Loiras e Morenas e isso é incrível: um matador, distante da realidade dos leitores, é reconhecível e único, enquanto as outras personagens poderiam ser pessoas de nosso próprio convívio.

Aquele/Aquela que fala

“E se tal frase dá a entender o surgimento de um romance, ela diz mais sobre o leitor que interpreta além do que está escrito.”

Pessoalmente, não gosto de narradores intrometidos. Para mim, quando o narrador se deixa observar diminui um pouco o encanto de estar mergulhada em uma narrativa que, enquanto leio, encaro como fatos, cenas em que eu mesma observo desenrolando à minha frente, ao invés de uma história ficcional. Além disso, eu passo a duvidar de algumas coisas que esse narrador conta, como aquele amigo meio mentiroso que sempre aumenta os acontecidos para tornar a fala mais interessante. A mesma coisa com narradores em primeira pessoa. No entanto, o narrador de “Mate-me quando quiser” me chamou atenção de uma forma positiva, pois faz algumas colocações curiosas. 

“Ele passou rente, de perfil, e quis Deus, o destino, o mago das penas, o protetor de quem escreve, ou seja lá quem for que do outro lado manda dicas, que ela tivesse olhado exatamente a direita da vitrine no exato momento em que a silhueta do Homem ali se refletiu.”

Para mim, essa frase é incrível! Existe uma coisa comum que acontece com alguns escritores, que é a impressão de o enredo e personagens se rebelarem e levarem a história para bem longe do lugar onde quem escreve planejou. Essa frase, ao mesmo tempo que enfatiza o poder do escritor sobre as personagens, valida a ideia de que há algo “maior” comandando o rumo da história, além do escritor. Também, nesta frase, o narrador não só expõe a sua própria existência, como a existência do escritor – nesse caso, a escritora, Anita Deak – e a Coisa que comanda o escritor. É uma denúncia completa da “hierarquia” da escrita!

Se eu tivesse que criticar negativamente algum aspecto dessa obra, seria essa: queria que esse narrador maravilhoso tivesse dado o ar de sua graça mais vezes. Mas não vou criticar, a obra é perfeita.

Premiações

Prêmio SESC de literatura (2013) – Finalista

Outros livros da autora

No fundo do oceano, os animais invisíveis (Compre com a autora)

Leia mais resenhas de livros de autores brasileiros aqui.

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