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Resenha: Pequena coreografia do adeus – Aline Bei

pequena coreografia do adeus - aline bei

Resenha do livro “Pequena coreografia do adeus” de Aline Bei

 “No fundo, toda gente só queria mesmo era suspender o tempo, e por que não? Voar um pouco, esse poder de gelo e asa que arte sempre tem.”

Pequena coreografia do adeus – Aline Bei

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Comentários da Lis: 

“O que me deixa triste é que meu pai me abandona muito. A minha mãe ele abandonou de uma vez, mas comigo é pior, ele fica me abandonando devagar.”

Mais uma vez, Aline Bei nos encanta com sua escrita cheia de melodia contando a história de Júlia e a dissolução da sua família tal como a conhece, materializando na ficção os sentimentos contraditórios que pessoas têm que lidar ao longo de sua própria existência. A família se separa, mas as pessoas que a compunha continuam lá, esperando e exigindo o que lhes é devido; o que acontece quando uma criança, praticamente invisível no meio do caos das frustrações particulares de cada um de seus pais e sem poder nenhum de ação, cresce? É uma narrativa marcada por solidões, ausências e abandonos, mas também pela possibilidade da compreensão, perdão, superação. Acompanhamos não só a trajetória de Júlia pela vida, mas para o despertar do Ser Artista, tão dolorosa quanto nascer e crescer, afinal:  

“o Artista não é quem explode por dentro, isso pode acontecer com toda e qualquer pessoa; só é Artista quem 

Entrega

a explosão

aos pés do público

com ritmo, poesia, beleza

ainda que ele esteja dançando um crime.”

Solidões, ausências e abandonos

“muitas nem se amam, se casam por medo 

da Solidão e

têm filhos 

pelos mesmos motivos.”

Precavido pelo histórico desde “O peso do pássaro morto” e o novo título, o leitor já começa a leitura da Pequena sabendo que vai sangrar. E sangra. A autora invade a privacidade dessa família e expõe as dores do casal e como refletem na Júlia, desde a sua infância. É nos hiatos dos parágrafos, aquela linha escrita com tinta invisível – que compreendemos a partir do que está diante de nossos olhos – que o par se desmancha e se revela tão diferente, com motivações tão próprias e frustrações tão singulares que a gente se pergunta como é que um dia os dois formaram uma unidade. Caminharam lado a lado, paralelamente, sem nunca se cruzarem, sem saber para onde iam. No meio deles, cresce uma Júlia que é quase mais uma coisa dentro da casa, como se não tivesse vontade e sentimentos próprios, sujeita a vontade e sentimentos alheios, principalmente os da mãe, com quem convive.

“Como recolheria meus cacos se eles são invisíveis?”

Parte dos traumas de Júlia vêm da sensação de invisibilidade de si em relação aos outros: como que encarcerados dentro delas mesmas, cegas para o mundo, as pessoas que convivem com ela não percebem as faltas que a preenchem. É como se o amor incondicional da família desobrigasse alguém de cuidar dos seus ou, pior, como se a família fosse obrigada a perdoar automaticamente cada desagrado, mágoa, ferida a que é submetida. A Pequena denuncia tudo isso, trazendo ao palco os escombros dessa cultura.

“os estranhos não nos doem porque ainda não nos decepcionaram” 

Talvez seja ser por isso, também, que Júlia age de forma defensiva com o Ricardo: ele a vê, mas para que isso continue sendo verdade, eles não podem se aproximar. O mecanismo de Júlia, para não magoar a si mesma encarando a verdade, é dizer a si mesma que ele vai embora, a abandonará como os outros fizeram. Pelo contrário, ela se envolve com Maurício; com ele é diferente, não corre o risco de ser abandonada. É ela quem o abandona. É isso o que não só o divórcio, mas também a relação conturbada de seus pais, fez por ela.

“a gente pensa que conhece as pessoas

a gente se apega ao que imaginamos que conhecemos delas

mas no fim o que cada um constrói com o outro

quando não estamos no recinto

é um Mistério.” 

O final é um vislumbre do poder de cura de Júlia: ainda que continue sendo negado a sua pessoa o afeto cuja ausência carregou por toda a vida, ela é capaz de perdoar e se doar no momento em que é a mãe quem precisa receber a afeição que também nunca teve. De alguma forma, Júlia sabe que alguém precisa quebrar o círculo e elege a si mesma.

As mães

“foi quando eu compreendi 

que a minha mãe tinha uma outra mãe possível dentro de si

difícil de cavar, e como!, ainda assim

e por isso mesmo

uma joia

de mãe, essa mulher doce e

fantasmagórica

que comandava o barco materno quando tudo escurecia

e que ainda esperava pela chuva 

em suas pétalas

o que, no mesmo instante, me fazia esperar também.”

Para compensar a relação perturbada com a mãe, Júlia tropeça em algumas figuras maternas, a mais forte, talvez, seja a da viúva Argentina, dona da pensão onde mora. É dessa relação que surge uma das cenas mais bonitas da obra: em uma sala de chá escondida por uma porta no vão da escada, a viúva arrasta a cabeça de Júlia para seu colo e o gesto de carinho, tão fácil, tão delicado, a faz crescer. Penso que não seja coincidência que é só depois disso que Júlia não sente mais a vontade de escrever sobre si em seu diário, e, quase sem querer, começa a escrever o conto sobre o menino Ed.

A coreografia da artista

“o Artista não é quem explode por dentro, isso pode acontecer com toda e qualquer pessoa; só é Artista quem 

Entrega

a explosão

aos pés do público

com ritmo, poesia, beleza

ainda que ele esteja dançando um crime.”

Acompanhar o desenvolvimento de Júlia como artista também é uma delícia. Primeiro, no balé, o leitor mais inclinado aos finais felizes nutre a esperança de que enfim a pequena Júlia encontrará um espaço para se expressar e até mesmo descarregar a angústia que acompanha. Mas não. Ninguém poderia saber, nem mesmo ela, aquele não era o seu meio.

Em pouquíssimos momentos íntimos com a mãe, deitada em sua cama, esperando aquele momento em que ela delira entre os mundos do sonho e da vigília, que Júlia descobre que a mãe esconde uma sensibilidade inerente aos artistas. A diferença entre elas é que a mãe deixou-se distrair pela vida, observando enquanto “o sonho foi se transformando em outras coisas.”. Pessoalmente, achei incrível que elas compartilhassem isso, apesar da relação conturbada.

“É um escritor, ela me disse, e fez todo o sentido, quem usa as palavras no papel vai ficando mesmo cada vez mais leve.”

O que eu achei mais curioso é que Júlia parece realmente perceber a escrita como uma possibilidade depois da passagem de um hóspede da pensão onde mora, que de alguma forma “valida” sua aspiração em uma carta. Isso me fez lembrar que, ainda que escrever seja uma necessidade, um chamado ao qual não se pode ignorar sem matar o próprio espírito, a arte não existe por si só, precisa ser compartilhada. 

Notas sobre o aspecto formal e estilístico da autora / do autor

Para finalizar, devo dizer algo sobre a escrita da Aline Bei. Em o “Peso do Pássaro Morto”, ela nos introduz a um estilo muito próprio de narrativa, que nos convida a respirar junto com o texto; para mim, assim como imagino que foi para outros leitores, foi uma experiência única, nova, cheia de originalidade, que enriqueceu ainda mais minha experiência de leitura. Em a “Pequena Coreografia do Adeus”, a autora renova essa invocação, trazendo novos elementos de destaque, mais uma vez inovando em imagens, não só em sentido, mas também nos desenhos que as suas palavras formam em uma página – dor no meu coração toda vez que eu li uma palavra como “eu” grafada em um tamanho de fonte menor do que o resto do texto. Aline Bei revoluciona o conceito da “inovação” em dizer mais do que as palavras dizem.

Pessoalmente, acredito que o leitor deve consumir as obras no formato que mais lhe couber, no entanto, essa em específica eu recomendo o formato físico do livro.

Se interessar, você pode comprar aqui

Ou com a própria autora (o bônus é que vem autografado).

“O Peso do Pássaro do Morto” pode ser adquirido aqui

Leia mais resenhas de livros de autores brasileiros aqui.

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