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Resenha: Desmantelo – Natasha Silva Siviero

desmantelo natasha silva silvieiro

Resenha do livro “Desmantelo” da autora brasileira Natasha Silva Siviero

“Vi, no ponto, um homem com dois vasinhos de violeta.
Dá na gente vontade de amar todos os homens e todas as flores.
Vontade de amar você,
você, que nunca me deu buquê.
Mas que me tem um amor tão simples, tão bonitinho,
que me enche os vasinhos,
como se fosse eu mesma
um parzinho de violetas.”

Desmantelo – Natasha Silva Siviero

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

O objetivo dessa resenha não é fazer um resumo ou explicar a obra; este texto é uma livre exposição de experiências pessoais de leitura.

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Comentários da Lis:

Que livro lindo! E é lindo de tantas maneiras! O olhar sensível da autora capta de forma única as trivialidades do cotidiano e usa as palavras para evidenciar a beleza desses detalhes. É como se ela dissesse: olha, vou te mostrar como se apaixonar pela vida como ela é. Depois, há a sutileza da mudança do humor da obra: o título anuncia o desconforto, mas o início da leitura é todo amoroso, um abraço carinhoso para desarmar (e preparar) a leitora e o leitor para o que virá. E a autora não larga sua mão. E você vai amar o que ela tem para mostrar.

Acompanho há algum tempo a Editora Urutau, o que me fez valorizar ainda mais a linha editorial das editoras, no geral; cheguei a este livro, por exemplo, indo direto no site da editora, porque estava com vontade de ler algo diferente do que me indicavam (o que sempre traz vieses) e sabia que os livros publicados pela editora combinam com meu gosto literário. Então quero deixar meus agradecimentos: primeiro à autora, pelo tempo dedicado a esta obra e por querer compartilhá-la conosco, e, depois, à editora, cujo trabalho tem sido magnífico.

A vida não é uma escada

“Que há que há comigo que não sou designer, que nunca que fui CEO de nada, que nunca li um livro do Bill Gates?”

Que história sem graça que Natasha conta. Uma história que podia ser contada por você, pela sua prima, sua vizinha, sua irmã, sua tia. Uma mulher que é casada, tem filhos, um emprego comum, problema com ratos e baratas dentro de casa, vai à feira, ao pediatra, é traída, muda de cidade, quer que os filhos já fossem crescidos para sofrer em paz, está cansada de não ser só para si. Ela continua.

Essa é a coisa mais bonita deste livro. Expõe toda a banalidade da vida da maioria de nós – os que não são CEO – e nos diz: está tudo bem. E se não está, veja como pode ficar. Essa é toda a graça dessa obra linda: a vida é muito mais medíocre que as histórias que nos contaram e mesmo os dramas – principalmente eles! – são velhos conhecidos de toda a gente. E então por que ler “Desmantelo”?

“Você vai chorar três dias ou três anos, depois há de aprender a ver beleza nos pedaços.”

É isso. O olhar sensível da narradora conduz a pessoa que lê a uma visão mais significativa do cotidiano, voltada para o presente, desiludida das fantasias de uma vida de sucesso, que todos nós aprendemos buscar. É essa perspectiva que nos mostra que a desilusão é boa; é sobre a apreciação do que está ao alcance, quando o pescoço já dói porque a cabeça está sempre voltada para o alto da escada e as pernas já não respondem por que se subiu demais. Natasha nos convida a sentar em um degrau e observar, cultivar nosso pé de mato, e nos sentir bem com isso.

As trivialidades do cotidiano

“Como é que eu vim parar aqui, amor, como é que eu pude sair de casa sem a minha saia indiana?”

Eu achei essa página de onde retirei o trecho (21) de uma delicadeza sem tamanho. (Provavelmente eu transcreveria o livro inteiro se me pedissem para falar sobre as passagens mais bonitas). Parece bobo, ela esqueceu uma saia na casa dos pais quando se casou, e daí? Mas não é sobre isso: é sobre o espanto de perceber o tanto que deixou para trás quando se casou. Deve ser por isso que há todo um ritual de casamento (seja qual for a religião): quando se casa, se escolhe uma vida diferente da que se tinha, onde não cabe mais aquela saia indiana tão adorada antes (está começando a entender?); depois vêm os filhos. É outra vida que se escolhe, diferente das outras duas.

A autora vai mostrando todas as suas descobertas ao longo do livro; apesar das “partes” serem divididas conforme seus aniversários avançam, não é isso ou um grande acontecimento que marca essas catarses: é sempre uma coisinha no meio do dia, coisas que passariam desapercebidas para um narrador viciado nos eventos da história. É um recurso tão poderoso que quando o livro acaba, não acaba, a leitora e o leitor continuam lendo o cotidiano, sem perceberem que já começaram a ver a beleza nas suas próprias rotinas.

A mãe e seus filhos

(ou: A narradora e suas palavras)

(ou: A mulher e as dores de ser mulher)

Impossível dissociar a voz que narra da voz feminina. É uma obra pensada e escrita por uma mulher, sobre uma mulher, para mulheres. Porém, são linhas tão poderosas que arrisco dizer que até quem não é mulher vai sentir o impacto delas.

“Sou eu, a vaca, que vos fala. Pois o senhor me mate, mas se não for um bezerro muito lindo, cheiroso e com esses olhinhos, se não for você o meu bezerrinho, pois não me venha me tomar o leite”

Destaquei esse trecho em específico porque exemplifica bem o que quero dizer: eu não sou mãe, mas essa página me fez conectar de forma profunda, como nenhuma outra leitura havia feito antes, com o significado desse acontecimento para uma mulher. Poderia destacar diversos outros trechos, mas esse foi o que mais me chamou a atenção: comer carne e beber leite são ações tão comuns no nosso dia a dia que nem mesmo pensamos sobre a origem desses alimentos e para que eles serviam antes de chegar à nossa mesa. A carne, a vida que a vaca sintetizou para ela mesma, a partir do pasto e da água; o leite, alimento que a vaca produziu para seu filho, a partir dela mesma. E nós tomamos a vida da vaca e o alimento de seus filhos. Para a narradora, é preferível tomar-lhe a carne do que o que é de seu filho. Não há outra maneira de explicar a potência disso que não seja da forma em que a autora coloca em 10 linhas.

“ (…) demorei para conseguir uma consulta, pediatra humanizado, acho engraçado esse termo, como uma maçã que, de repente, se deu conta de que é uma maçã.”

Da mesma forma, há uma força na exposição crua dos acontecimentos na vida dessa mulher e mãe, que, quase sem intenção, organicamente, vai contra a romantização. O dia mais feliz da vida não é o dia do casamento, não é o dia de nascimento do primogênito: essa mulher está completa quando, após amamentar o neném, o filho mais velho se deita na cama junto com os pais e o irmão, o marido dá um sorriso meio ainda dormindo. Essa narrativa é sobre lugares e tempos de paz, conforto, quando tudo o que mais importa está ali, ao alcance de sua respiração.

“Por onde ando eu que não criei uma startup? Que nunca fiz um plano de negócios, que nunca fui boa de conta, nunca fui boa de gente, nunca fui boa de cama, nunca estive entre os grandes, não posei nos jornais. E ele nunca que me quer assim: escrevedora de coisinhas, professorinha de colegial.”

Digo com conhecimento de causa que o espanto por chegar aos 30 e perceber que conquistar tudo aquilo que nos falaram que deveríamos conquistar antes dessa idade é possível para pouquíssimos – e você não contou com essa sorte – é tão desesperador quanto perceber que escrever não é tão encantador quanto as pessoas pensam – passar algumas horas escrevendo umas linhas e surgiu um livro – é tão trabalhoso quanto qualquer outro trabalho. Talvez seja mais ainda, inclusive, porque além do trabalho da escrita, há sempre o outro trabalho, aquele que gera a renda, ou aquele que você não pode deixar de fazer, como cuidar dos filhos, e da casa, e da família, e dos amigos, e da vida – que não mais te pertence. É certo dizer que para uma mulher – e mãe – fazer isso é ainda mais desafiador.

Consigo claramente ver essa narradora rabiscando em um papel ou digitando rapidamente em um documento aberto às pressas, no hiato entre uma tarefa e outra, uma ideia que surgiu de uma exploração mental enquanto fazia outra coisa.

“Sei que esse texto existe no computador, chama-se ‘Reflexo1’, posso vê-lo dentro da pasta ‘naopublicado’, que fica dentro da pasta ‘blog’, que fica dentro da pasta ‘meu’, que fica dentro da pasta ‘antigos’, que fica dentro da pasta ‘tudo’, que fica dentro da pasta ‘caos’, que fica dentro da pasta ‘organizar’, que fica dentro da pasta ‘BKUP2012’, que fica dentro da pasta ‘DocumentosNatasha”, mas não vou achá-lo.”

O livro todo é um apanhado de parágrafos, pequenos contos, poesias, tudo aparentemente aleatório demais; é a palavra não dita – ou não impressa – a linha que costura a história dessa mulher e mãe, que também achou o tempo para se encontrar com a escritora que há em si. E cuidar dela.

“Quero escrever como um verdureiro. Sentada à frente da minha balança, separo tubérculos de raízes. E mesmo tubérculos de tubérculos, porque há batatas e batatas.”

Devo dizer, Natasha: que lindas batatas você separou para nós!

Notas sobre o aspecto formal da obra e estilístico da autora

“Quando eu nasci,

uma anja torta

dessas que têm cifose

(de carregar peso de peito)

Disse:

Vai, Natasha, ser uma coisa na vida

amanhã ser outra.”

Como pessoa que também escreve, sinto-me grata por descobrir com a Natasha que não é necessário encaixar uma obra em uma classificação: a cada virar de página se encontra contos e poesias que claramente formam um romance. O que é esse livro? Só é. E que execução! A escrita da Natasha é lúcida e segura, e também sensível e encantadora.

Gostei particularmente da caracterização das cenas e pessoas; frequentemente a pessoa que lê vai se surpreender por se dar conta de estar lendo palavras e não admirando uma fotografia.

“Só depois que ele falou é que me dei conta de que você é um homem infartável. O médico me deu a notícia da sua perecividade com as mãos no ombro.”

Outra coisa agradável nessa leitura: é como um diálogo. Não há floreios na narrativa, a autora parece escrever de um lugar muito confortável o que é para ser lido em um lugar acolhedor.

(Agora mesmo enquanto transcrevo o trecho da página 105 o editor de texto está me dizendo que “infartável” e “perecividade” são palavras que não existem. E é essa a magia de ser um(a) escritor(a): as histórias que não existem, assim como as palavras inexistentes, são representações do que toda pessoa é capaz de entender. A gente inventa para mostrar perspectivas diferentes do que é sabido. A gente inventa para ressaltar o óbvio, às vezes através do absurdo, porque na realidade em que efetivamente vivemos ele não é crível.)

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Para ler, compre Desmantelo aqui

Leia mais resenhas de livros de autores brasileiros aqui.

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Por que comprar?

(leia com amor no coração)

Você sabia que pirataria é crime? Aquele pdf que você baixa e lê com tanto amor pode parecer inocente, mas é criminoso. Ao invés de se esconder sob o pretexto da acessibilidade da cultura, se você pode pagar por uma obra, pague. Pense que ler um pdf é como sair de uma padaria com um pão na mão, sem pagar; o padeiro trabalhou um tempo nessa massa, o forno também, além do custo com o gás, equipamentos, aluguel do estabelecimento, etc. Se quiser ir ainda mais longe, pense no trigo que você não plantou, na rega que você não fez, da colheita que você não participou, a farinha que não foi moída por você. Você foi lá e só pegou o pão. Com um livro é mais ou menos a mesma coisa: o autor / a autora trabalha meses em um texto (não se iluda, não se escreve um livro em dois dias), envolve outros profissionais no trabalho (revisores, preparadores, capistas, tradutores, etc.), faz evento de lançamento, etc. etc. (Sim, muitos eteceteras). Se você acha injusto o preço de um livro, procure meios de mudar isso ao invés de roubar. Já experimentou, por exemplo, comprar de uma autora ou autor independente? Além de receber um livro com dedicatória, você estará verdadeiramente apoiando a cultura, dando subsídios para que uma escritora ou escritor continue escrevendo. Isso também vale para pequenas editoras e livrarias.

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