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Resenha: Nemesis – Philip Roth

nemesis - philip roth

Resenha do livro Nemesis de Philip Roth

“Era impossível acreditar que Alan estivesse dentro daquela caixa de tábuas de pinho pálido e sem adornos só por ter pegado uma doença de verão. Aquela caixa da qual ninguém pode escapar por mais forte que seja. Aquela caixa em que um garoto de doze anos ficava com doze para sempre. Nós todos vivemos e envelhecemos a cada dia, porém ele permanece com doze anos. Milhões de anos se passaram, mas ele tem ainda doze anos.”

Nemesis – Philip Roth

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Resumo:

Eugene “Bucky” Cantor é um jovem adulto muito bem disposto e com um forte senso de responsabilidade com as crianças e adolescentes para quem leciona aulas de educação física na cidade de Newark, em 1944. A história de vida dele é marcada por perdas desde antes do início da narrativa: a mãe morreu enquanto dava à luz a ele, o pai é um malandro que foi preso e não aprendeu a ser honesto, e, por isso, foi criado pelos avós; ele mesmo tem um forte quadro de miopia que o impede a acompanhar seus amigos na guerra. No entanto, resignado, ele continua cumprindo com seus deveres da melhor forma que pode e, por isso, é admirado por suas crianças, em cujas mentes ele é uma espécie de modelo. No verão em que a narrativa começa, há uma grave epidemia de poliomielite; na época em que se passa a história, ainda não havia vacina, nem mesmo se sabia ao certo como se transmitia. As crianças começam a adoecer – e morrer – e a comunidade se rende ao medo e ao desespero; o próprio Bucky começa a se questionar se está fazendo o certo ao manter as atividades físicas do pátio do qual é fiscal quando recebe da então namorada, Marcia, um convite tentador: assumir a chefia de esportes aquático em uma colônia de férias para crianças em Indian Hill, um lugarzinho idílico e seguro da poliomielite nas montanhas de Pocono. Mesmo atordoado com a sensação de estar abandonando seus meninos em Newark, Bucky vai, e durante quase uma semana vive em certa paz e tranquilidade. Porém, o primeiro caso de poliomielite na colônia é seguido de outros, o que provoca o fechamento do lugar, logo após o próprio Bucky testar positivo em exames que identificam a poliomielite, que não se demora em evoluir para a forma mais grave da doença. Para Bucky, essa é a confirmação de sua suspeita de que era ele quem estava infectando as crianças, embora todos tentem convencê-lo de que não haveria como saber. Ele usa seu aleijamento pela doença para justificar o rompimento com Marcia, com que ia se casar, e viver uma vida miserável afundado em culpa.

Comentários da Lis: 

Esse livro é tão bem escrito que até mesmo uma enumeração crua dos acontecimentos da narrativa é capaz de já evidenciar a mensagem que se propõe a deixar. Mas, como sempre, destaquei alguns pontos que me chamaram a atenção.

Epidemias e Pandemias

Li este livro em maio de 2021. No momento em que escrevo a resenha, ainda não há um horizonte mais feliz para o desfecho da pandemia do Covid19. Impossível não relacionar esses momentos; na época em que se passa a narrativa de “Nêmesis”, o vetor da poliomielite ainda não era conhecido e tampouco havia cura, podendo se manifestar de forma branda ou causar sequelas irreversíveis, até a morte. Palavras como “quarentena” são comuns na obra e na vida real. Também compartilhamos o medo do desconhecido, a raiva, a dor da despedida. 

Confesso que a obstinação inicial de Bucky em manter as crianças ativas, sem medo, foi bastante inspiradora. Aos poucos, ele vai se consumindo em dúvidas, algumas das quais bastante comuns para quem vive hoje: e se desta vez que eu preciso sair da minha casa eu tiver contato com alguém contaminado? E se eu contaminar alguém?

“Seguindo o exemplo dos indígenas, advogam provas de iniciação que exigem fortaleza. Propõem que a base de todo poder é o autocontrole.”

A compreensão de Bucky sobre seu papel na tragédia nos ajuda a olhar de forma mais objetiva o nosso próprio cenário: ele próprio se preocupava com a disseminação da doença e orientava os demais como prevenir e, mesmo assim, sofreu pessoalmente com a doença. Ele teve culpa? Para o leitor e para a leitora, cativados com sua história, é fácil “perdoá-lo”, afinal, qualquer um estava sujeito a esse sofrimento. Passamos a ter consciência que a tragédia em que vivemos não é estritamente pessoal, embora todos tenhamos um papel importante a desempenhar: se cuidem e cuidem do próximo.

O desfecho de “Nêmesis” nada tem a ver com a epidemia, mas com as escolhas de Bucky, em particular, que possivelmente seria a mesma em outro contexto que não a epidemia da poliomielite. Isso me leva ao próximo item: 

A culpa de Bucky

“A culpa em alguém como Bucky pode parecer absurda, porém é, de fato, inevitável. Uma pessoa como ele está condenada. Tudo que fizer jamais irá corresponder ao ideal que carrega dentro de si. Nunca sabe onde termina sua responsabilidade. Jamais aceita seus limites porque sobrecarregado com uma severa bondade natural que não lhe permite resignar-se ao sofrimento dos outros, nunca admitirá, sem se sentir culpado, que possa estar sujeito a alguma limitação. O maior triunfo de uma pessoa assim está em poupar sua bem-amada de ter um marido aleijado, e o heroísmo consiste em negar seu desejo mais profundo ao abrir mão dela.”

Essa é a frase que eu usaria para resumir e definir a temática desse livro. A guerra, a poliomielite, a morte, são temáticas coadjuvantes messa história. Estamos falando da culpa.

Em outras passagens do texto o narrador entende que Bucky também é constituído de uma obrigação autoimposta de ser “perfeito” do ponto de vista moral, provavelmente impelido por sua história pessoal, em que paira a sombra de um pai mau caráter. Por isso ele não consegue conviver com a ideia de (talvez) ter sido o vetor da doença; não entende que a tragédia não é pessoal, que as crianças estariam sujeitas a doença, sofreriam e morreriam da mesma forma, ainda que o próprio Bucky não existisse ou estivesse na guerra.

Na minha humilde opinião, o dilema do “Bucky transmitiu ou não a poliomielite para as crianças” é como “Capitu traiu ou não traiu Bentinho”: não importa. É muito menos pelo fato em si, é sobre como a possibilidade surge na cabeça dessas personagens e como a dúvida (ou uma certeza, infundada ou não) reverbera nelas.

E, como nos explica o narrador, Bucky entende como necessário esse ato de heroísmo – ou punição – para compensar o mal que acha que causou.

A bondade de Deus

“Depois de todo esse tempo, de repente ocorreu ao sr. Cantor que Deus não só estava permitindo que a poliomielite irrompesse avassaladoramente no bairro de Weequahic, mas vinte e três anos antes também havia permitido que sua mãe, apenas dois anos depois de terminar o ginásio e dois anos mais jovem do que ele agora, morresse no parto. (…) podia compreender que as coisas eram o que eram por causa de Deus. Não fosse por Deus, não fosse pela natureza de Deus, elas certamente seriam diferentes.”

Ao longo da narrativa, Bucky começa a se perguntar a razão de Deus permitir o sofrimento dessas crianças, assim como a participação Dele em sua própria catástrofe familiar. Particularmente, não tenho nenhuma crença religiosa, e sempre achei essa frase no mínimo curiosa quando usada principalmente por ateus para argumentar a não-existência de Deus. Parte-se do pressuposto que Deus é bom, quando na verdade a Sua maior característica deveria ser “Onipotente” e, no meu entendimento, um ser onipotente faz o que bem entende. Não é esse o princípio da fé? Confiar incondicionalmente ainda que não se entenda? O fato de Bucky, no final do livro, afirmar que acredita em Deus embora as suas ideias O classifiquem como “um filho da puta maluco e um gênio do mal”, me parece bastante interessante: mesmo sem concordar, ele ainda tem fé.

Discordo do que nos diz o narrador: “sua concepção não passava de uma arrogância idiota, não a soberba da vontade ou do desejo, mas a soberba de uma interpretação religiosa fantástica e infantil.”. A colocação é contaminada por sua visão ateísta, fatalista, que ignora a perspectiva do outro que acredita ser Deus o Criador de tudo; não é infantil se revoltar contra um Deus que também cria o sofrimento. É uma escolha.

Os “spoilers” no meio da narrativa

“Podemos ser juízes muito severos de nós mesmos quando não há motivo para isso. O senso de responsabilidade mal orientado pode ser uma coisa bem debilitante.”

Essa frase é uma fala do Doutor Steinberg, pai de Marcia, a quem Bucky recorre para se tranquilizar, ainda antes de ir para Indian Hill. Ele explicava ao genro o porquê a mãe de um dos garotos o acusou de estar ajudando a espalhar a doença ao manter a atividade do pátio: desespero. Parece que esse senso de responsabilidade de Bucky é uma característica tão marcante que é bastante clara para quem convive com ele. O doutor já o alertava, sem saber, sobre o desfecho de sua história.

Outra coisa bastante interessante que antecipa o desfecho é música que Marcia adora: “I’ll be seeing you”. Quando eles a cantam juntos na ilhota no acampamento, a melodia meio cortada pelo afastamento da fonte do som faz com que pareça uma inocente música de amor. Mas a letra que se oculta nesta cena já adianta o destino dos dois apaixonados:

“I’ll be seeing you

In every lovely summer’s day

In every thing that’s light and gay

I’ll always think of you that way”

No final, descobrimos que Bucky nunca mais viu Marcia depois daquele dia em que permitiu que ela o visitasse enquanto ainda estava em tratamento – e a rejeitou cruelmente. Mas a via sempre pelas ruas, como relata ao Arnie quase trinta anos depois: ainda moça, congelada naquele tempo em ainda estava em seu alcance ter tudo o que mais desejou na vida.

Notas sobre o aspecto formal e estilístico do autor

Em minha opinião, o estilo dessa obra segue um padrão narrativo das histórias fluídas em que o aspecto formal serve à narrativa, com o objetivo de colocá-la em evidência. Não há rebuscamentos, pelo contrário: em algumas passagens, as descrições dos lugares provocam um encantamento em quem lê, porém, na maior parte das linhas predomina certa secura. Particularmente, me agrada esse estilo que empurra a história para frente e em uma só direção; principalmente para um tema tão pesado, também abstrato, é essencial, e o autor trabalha muito bem nesse sentido.

“A manhã seguinte foi a pior até então. Mais três meninos diagnosticados com pólio – Leo Feinswog Paul Lippman e eu, Arnie Mesnikoff.”

Até a página 82 dessa edição acompanhamos a história pelo que acreditamos ser um simples narrador onisciente com foco narrativo no Bucky, quando então nos deparamos com essa frase – e nada mais. Recuperada (só um pouco) do impacto, eu tinha 2 certezas, pelo menos: Arnie Mesnikoff e o sr. Cantor sobreviveriam e eles conversariam em algum momento sobre os acontecimentos daquele verão.

Achei essa revelação, neste ponto, fantástica; para mim, mudou o jeito com que avancei a leitura, porque outra história já se adiantava em minha cabeça: quem é Arnie Mesnikoff e por que é ele quem conta essa história? Como ele sabe tanto de como Bucky se sentia? No final, acompanhamos as conversas das duas personagens, narrador e protagonista, e entendemos melhor essa relação. Diálogos esses que acabam servindo como síntese mais explicativa para tudo o que a história mostra ao longo das páginas, mas ainda assim muito bem contextualizados e essenciais para guiar o leitor e a leitora nesse maravilhoso desfecho.

Obras relacionadas e Outras obras do autor

A peste – Albert Camus. (Compre aqui

Nêmesis – Philip Roth. (Compre aqui

O complexo de Portnoy – Philip Roth. (Compre aqui

Pastoral Americana – Philip Roth (Compre aqui

Referências do livro:

“I’ll be seeing you”

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