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Resenha: O mapeador de ausências – Mia Couto

o mapeador de ausencias - mia couto

Resenha do livro “O mapeador de ausências” de Mia Couto

“As viagens são assim, meu caro amigo, sabemos do seu propósito apenas depois de regressarmos.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

O objetivo dessa resenha não é fazer um resumo ou explicar a obra; este texto é uma livre exposição de experiências pessoais de leitura.

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Comentários da Lis:

Sou uma apaixonada pela escrita de Mia Couto e cada vez que leio alguma obra dele acredito ser impossível essa admiração aumentar – e me surpreendo. Além do quebra-cabeças da trama visível que o autor constrói, em “O mapeador de ausências” o leitor também é convidado a se perder no labirinto das motivações particulares das personagens (e que personagens!), nas atrocidades do passado de uma Moçambique ainda colônia, e a eminência de um ciclone que, sabemos, foi devastador. É um livro que costura passado, presente e futuro, poesia e política, particular e comunidade, e encanta do início ao fim.

Abaixo deixo alguns comentários sobre aspectos dessa obra que me chamaram atenção:

Arte & Política

“Esta narrativa ficcional foi inspirada em pessoas e episódios reais. Por outras palavras: neste livro, nem gente, nem datas, nem lugares têm outra pretensão que não a de serem ficção.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Então Adriano Santiago é uma personagem de ficção… Que seja! Porém, não é preciso ir muito longe para lembrar a biografia de artistas que sofreram censuras, perseguições, prisões, torturas, em regimes autoritários. Independente de posicionamento político, penso que em momentos históricos como o retratado no livro a sensibilidade do artista sempre o aproximará do perigo, porque é inerente à natureza dele estar sempre a criar realidades e/ou novas perspectivas dela. É no solo árido para o que é mundano que aquilo que pareceria mera fantasia em outros tempos é almejado como uma nova verdade.

“Um escritor, defendia Adriano Santiago, precisa de uma doença, de preferência uma que não seja possível diagnosticar. Segundo ele, havia dois inimigos da inspiração poética: o primeiro era ser saudável num mundo tão doente; o segundo era ser feliz num mundo tão injusto.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Neste livro, a história e a estória se baseiam uma na outra e se constroem juntas. Pessoalmente, não me atrai o gênero da ficção histórica, pois gosto de fazer minhas leituras sem pausas e frequentemente as referências não explicadas (e nem devem ser!) que desconheço me confundem e me deixam a impressão de lacunas no que estou lendo. Aqui, no entanto, as lacunas fazem parte da obra, e a enriquecem. Minha sensação era a de estar inserida naquele contexto, vivendo junto com essas personagens, sem saber exatamente o que estava acontecendo, em quem confiar. Ao mesmo tempo, também aprendi.

O quebra-cabeça

“Um passo em falso e corria o risco de me afundar em escuros abismos. Eis a minha doença: não me restam lembranças, tenho apenas sonhos. Sou um inventor de esquecimentos.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Pegue 3 ou 4 jogos de quebra-cabeças, misture suas peças em uma única caixa e tente montá-los novamente.

Essa é a experiência de ler “O mapeador de ausências”. No início, há uma proposta de história: o Diogo adulto vai a Beira encontrar o Diogo que ele fora. Porém, ao leitor vai se apresentando uma coleção de outras histórias: há Liana e sua mãe (morta quantas vezes?); há Sandro, sua homossexualidade e seu sumiço; há Adriano e seu comprometimento mais e menos interessado com a luta; há Camila e os abusos que sofreu, e Jerônimo e o fantasma de Jerônimo; há Maniara e seus mortos e seus vivos; há Óscar Campos e suas atitudes ambivalentes, quase compreensíveis ao se revelar o final; há Capitine e a mentira involuntária de seu assassinato e o vazio da verdade sobre sua morte – e eu não consigo decidir se é mais triste a mentira ou a verdade.

São tantas histórias! E tantas mais! A junção delas é maior do que a obra final. Como se montássemos um livro de quebra-cabeças. Cada uma das personagens, ao tentar cuidar da própria vida e dos próprios interesses, aperta mais os laços que unem a história de todas elas, que é apenas uma e, ao mesmo tempo, várias.

“As lembranças tornam-se perigosas quando deixamos de as falsificar.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Liana e Almalinda

“O drama de um amor impossível podia ser mais subversivo que mil panfletos políticos.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Desde o momento em que Diogo relembra a “lenda” dos namorados que se jogaram ao rio acorrentados em razão de seu amor proibido e a revelação de Liana de que essa jovem era a sua mãe, para mim, se tornou um dos maiores mistérios (ou quebra-cabeças) da obra. Logo Liana diz que a jovem, sua mãe, não morreu, porém, também não sabe muito de sua história. A personagem de Liana me causou estranheza desde o primeiro capítulo: uma hora pensava que ela e Diogo não se conheciam, outra hora pensava que eles tinham uma história. Depois, essa revelação, e eu só conseguia pensar: a mulher que Liana diz ser sua mãe, morreu ou não morreu? Se não morreu, em que momento e circunstância Liana nasceu? Se morreu, quem é de fato Liana? Por que ela acha, ou mente, sobre sua origem? A impressão que eu tive no começo, de que ela mentia para conseguir que Diogo a ajudasse em sua busca, se revelou parcialmente certa no decorrer da história: Diogo chega a Beira para buscar respostas para si e a aventura em que embarca acaba sendo mais proveitosa para Liana do que para ele. No final, eu fiquei me questionando sobre quem era essa história. Diogo? Adriano? Liana? Almalinda? Oscar? Sandro? As guerras? Beira? Ciclone?

Cultura, lendas, fantasia

“As crianças são enterradas junto ao leito. Não se enterra seca quem ainda não é pessoa. A vida é um percurso da água para a terra, do barro para o osso.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Creio que vem daqui a proporção maior da poesia. Eu sempre me questiono (e isso é muito importante) se o que eu acho mágico em culturas tão diferentes da minha é mesmo tão mágico ou é uma questão de perspectiva; as histórias do meu cotidiano e os meus costumes, tão comuns para mim, também pareceriam lendas, cheias de magia, para pessoas de cultura diferente da minha?

Independente das respostas que poderia obter (e nem estou tão preocupada assim, às vezes a pergunta é mais importante que a resposta), há de se exaltar a beleza nesses fatos-lendas.

Dentre tantas histórias, me impressionou em particular a do barco que vagava, ainda que tivesse âncoras, por não ter nome. “Os nomes são âncoras”. Para mim, essa história é de uma beleza superior. É algo que a escrita de Mia Couto, no geral, me provoca: estamos acostumadas a interagir com as coisas sem pensar nas coisas, justamente porque são coisas. Mia Couto dá vida às coisas, e não estou falando sobre o uso de figuras de linguagem, não é como se as coisas se personificassem: continuam sendo coisas, mas coisas vivas, e que têm vidas muito particulares, diferente do que chamamos de vida humana, animal, vegetal. Respiram, se nutrem, vivem a sua maneira e também morrem sem respeitar às leis que, como humanos, conhecemos. Essas coisas vivas nem mesmo consideram as nossas leis. Ler um livro de Mia Couto é vislumbrar um pedaço do mistério dos mundos que não conseguimos chegar sozinhos.

Notas sobre o aspecto formal da obra e estilístico do autor

“Parecia agora mais mirrada, o peito abraçado pelos ombros.”

O mapeador de ausências – Mia Couto

Para mim, é impossível ler um Mia Couto e não ser tocada profundamente em algum momento pela simples construção de uma passagem. Temos vários exemplos na literatura das prosas poéticas, mas o que me impressiona no estilo desse autor é a originalidade dessas formações e como elas impactam quem lê. “O peito abraçado pelos ombros” é mais que uma frase, mais que palavras, é uma imagem grandiosa, tão poderosa, que diz tantas coisas!

Além disso, nesta obra em específico, o autor convoca a variedade de discursos para compô-la: são relatórios, cartas, transcrições, diários, lembranças, e tudo é executado de forma tão confiante, tão certeira, que é fácil e confortável de acreditar que são relatórios, cartas, transcrições, diários, lembranças reais. É um bônus para quem escreve poder também estudar essa estrutura e aprender.

Outro aspecto interessante dessa obra é a preservação do português em que foi escrita. Para mim, a experiência foi bastante positiva. Nos últimos meses, li mais autoras e autores de língua portuguesa do que em toda a minha vida, e principalmente os contemporâneos, e tudo me parece tão mais bonito! Tão mais compreensível! Talvez também por estar aprendendo outra língua (espanhol), tenho pensado muito sobre o que se perde da obra em uma tradução, ainda que seja a melhor tradução – e acabo tentando fugir ao pensamento porque me dá desespero. Tenho muito respeito por essa valorização da linguagem pátria, é uma forma muito bonita de expressar o amor ao que se é.

Por fim, achei deliciosamente delicado também que a maioria das epígrafes sejam de poesias ou frases de Adriano Santiago.  Estamos acostumadas a ler debaixo desses trechos o nome de escritoras e escritores de grandeza indiscutível; descobrir Adriano Santiago ali e apreciar suas palavras me causou a vontade de que ele fosse mais do que ficção

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Um Rio chamado Tempo, uma Casa chamada Terra – Compre aqui 

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Por que comprar?

(leia com amor no coração)

Você sabia que pirataria é crime? Aquele pdf que você baixa e lê com tanto amor pode parecer inocente, mas é criminoso. Ao invés de se esconder sob o pretexto da acessibilidade da cultura, se você pode pagar por uma obra, pague. Pense que ler um pdf é como sair de uma padaria com um pão na mão, sem pagar; o padeiro trabalhou um tempo nessa massa, o forno também, além do custo com o gás, equipamentos, aluguel do estabelecimento, etc. Se quiser ir ainda mais longe, pense no trigo que você não plantou, na rega que você não fez, da colheita que você não participou, a farinha que não foi moída por você. Você foi lá e só pegou o pão. Com um livro é mais ou menos a mesma coisa: o autor / a autora trabalha meses em um texto (não se iluda, não se escreve um livro em dois dias), envolve outros profissionais no trabalho (revisores, preparadores, capistas, tradutores, etc.), faz evento de lançamento, etc. etc. (Sim, muitos eteceteras). Se você acha injusto o preço de um livro, procure meios de mudar isso ao invés de roubar. Já experimentou, por exemplo, comprar de uma autora ou autor independente? Além de receber um livro com dedicatória, você estará verdadeiramente apoiando a cultura, dando subsídios para que uma escritora ou escritor continue escrevendo. Isso também vale para pequenas editoras e livrarias.

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