fbpx

Resenha: O pássaro secreto – Marilia Arnaud

resenha-o-passaro-secreto-marilia-arnaud

Resenha do livro “O pássaro secreto” de Marilia Arnaud.

Atenção: esse texto contém spoilers. Se você ainda não leu este livro, recomendo que o faça antes de se aventurar por essas linhas.

Comentários da Lis: 

No começo da narrativa eu achei “engraçadinhos” a raiva e o ciúmes de Aglaia; embora a relação com as minhas irmãs em minha própria infância tenha sido positiva, sei que são comuns esses sentimentos entre irmãos, ainda mais na situação de Aglaia, que, à sua maneira, sentiu pessoalmente a traição do pai. Depois, como a própria narradora revela, percebi que havia algo de mais obscuro naqueles sentimentos. A história toda é uma costura dessas emoções, que vai ficando cada vez mais torta e ineficiente até sufocar a protagonista. É impossível avançar a leitura e não se sensibilizar pela situação e emoções de Aglaia, ainda que haja discordância sob aspectos morais.

Achei que a obra cumpriu o que propôs com sucesso, embora o tema das dores da adolescência me atraia muito pouco. Detalho abaixo o que mais me chamou atenção, como sempre, também trazendo o viés de uma pessoa que também escreve.

A perspectiva de Aglaia x outras personagens

“O mundo me parecia feito para longos passeios e a vida, um lugar por onde perambular sem hora para chegar.”

Uma das coisas que me chamaram muita atenção nesse livro de início foi a falta de reação de algumas personagens ou até algumas atitudes “absurdas”, principalmente dos adultos, como a doação do cavalo Soberano, preciosidade da avó Sarita, à Thalie, uma neta que até pouco tempo ela nem sabia que existia, e não conhecia. Porém, através de uma leitura mais atenta e profunda entendi que Aglaia manipula essa narrativa com o intuito de destacar e validar suas emoções para a pessoa que lê, provocando (e de certa forma, implorando) sua compaixão. Essa observação é totalmente coerente com a construção da protagonista, que cresce com abundância de acesso à literatura e cinema; por um lado ela tem fantasias sobre sua própria vida baseadas nas ficções que consome, por outro, íntima dessas histórias, sabe como construir sua própria narrativa.

“Foi assim, de um dia para o outro, que um feixe de luz começou a cair impiedosamente sobre meus pais e eu deixei de olhá-los de baixo para cima. Não eram mais assim tão belos nem tão justos nem tão invulneráveis, e de repente tornaram-se incapazes de garantir minha felicidade com a ambiguidade do seu amor e a precariedade da própria existência.”

Assim, o leitor se depara com falta de sensibilidade dos pais, principalmente do pai, em explicar para os outros filhos que Thalie perdera a mãe e mais recentemente a avó, de que ela precisaria do apoio e da compreensão deles, estranhos que agora se tornariam a sua família. É uma situação difícil para todos, para Thalie também. Heitor e Eufrosine, irmãos de Aglaia (que entendi serem mais velhos) parecem compreender de forma mais natural essas questões não ditas, implícitas; para Aglaia, a irmã que já traz um histórico de inadequação em relação ao mundo e carência de autoaceitação, mergulhada em suas próprias faltas, é impossível ser empática sem ajuda.

“Thalie movia-se na cadência dos que não se importam com o tempo, dos que sabem que o mundo se detém à sua passagem, e nas duas faixas os carros freavam para passar a menina de cabelos ruivos ao vento, em um incêndio que me queimou o coração.”

Thalie é perfeita. Ou é o que Aglaia quer que o leitor pense, como meio para justificar seu ódio gratuito pela irmã. Thalie me parece uma adolescente normal, com virtudes e defeitos, enfrentando as dificuldades do mundo e em busca de seu caminho como qualquer outra adolescente. Na minha leitura, apesar de Aglaia relatar apatia, Thalie reage sim às maldades dela, consigo ler com clareza cenas não escritas: depois de acordar com os cabelos tosados e chorar muito, Thalie volta do salão exibindo um visual diferente e que chama a atenção de todos; impossível não perguntarem o que aconteceu. Não consigo imaginar Thalie defendendo a irmã, ainda que empregue a omissão, mas sim explicando o ocorrido para receber a compaixão que Aglaia tanto almeja. Se Thalie fosse perfeita, teria compaixão pela irmã e talvez tentasse conversar com ela, algo que Aglaia não deixaria escapar em seu relato.

“Como uma peça do mobiliário, ela estava lá, permanentemente disponível, e ele se deitava nela para dormir, e sentava-se nela para ler, ver televisão, comer, mas, se lhe perguntassem de que material era feita, de que cor se revestia, ele não saberia dizer, porque simplesmente não a enxergava.”

A mãe é a personagem que me pareceu descrita de forma mais sincera pela narradora Aglaia. Quando Thalie chega, ela está no quarto, deitada. Ela demora a se afeiçoar à Thalie, nada mais compreensível, já que a menina é a materialização da traição de que foi vítima. A mãe conhece Aglaia mais do que tem a oportunidade de demonstrar; no episódio do sumiço de Chérri, o cachorrinho de Thalie, a própria Aglaia estranha o fato de a mãe não a acusar, já que todas as outras vezes anteriores em que a menina aprontou algo ela sabia quem foi a culpada. Essa atitude de acobertamento é um indicativo de que a mãe talvez intuísse o que se desaquietava no espírito de Aglaia, embora (e infelizmente) não soubesse como cuidar.

“Enfim, somos o que carregamos em nossos genes, ou o que aprendemos a ser?”

Por fim, o pai. Esse homem é charmoso e desenvolto para o mundo exterior ao da sua casa e extremamente reservado em seu escritório; poderia se confundir com um inquilino mal-humorado ou um irmão mais velho, rebelde e incompreendido. Para Aglaia, a menina que se vê como uma pessoa indigna de destaques (“deformada”, em suas próprias palavras), penetrar no mundo do pai através do cinema e da literatura, principalmente, é ter algo que ninguém mais tem, uma habilidade que é apenas sua, portanto, venerável. Talvez seja por isso que Aglaia ostenta ao longo da narrativa inteira suas referências, enumerando-as, como se os livros que leu, as músicas que escutou e os filmes a que assistiu fossem troféus a se expor em uma galeria, a prova inquestionável de sua erudição e superioridade. Mais uma vez, é compreensível que a chegada de Thalie provoque em Aglaia os sentimentos mais terríveis: quem essa menina pensa que é, chegando agora e despertando o pai da letargia rotineira enquanto ela, Aglaia, estudou, lutou sua vida inteira para conseguir isso? O problema de Aglaia, em minha opinião, não é pessoal com Thalie, mas está no que ela representa: outra pessoa também pode conseguir o que, até aquele momento, só ela conseguia, portanto, ela não é mais especial. Aglaia é obsessiva com a atenção do pai, e se torna também possessiva, estendendo esse sentimento às outras pessoas que a conhecem; à medida que Thalie obtém a afeição das pessoas, elas parecem se tornar indignas. Na cabeça de Aglaia, Thalie não é tão especial assim para “roubar” toda essa atenção; não entende que os sentimentos são abundantes e não precisam ser direcionados a uma ou a outra, mas podem ser de uma e de outra.

O pássaro secreto (ou a Coisa)

“Tão fácil invadir a mente das pessoas e dar voltas por corações borrados de vida! Estava tudo lá. Bastava mirá-las bem dentro dos olhos e mergulhar. O que mais me apavorou na primeira vez em que encontrei Thalie foi não enxergar nada dentro dela. Um livro sem palavras.”

Há muitas maneiras de se descrever os sentimentos ruins que vez ou outra roubam a razão de alguém. Na literatura, o desafio é fazer isso de uma forma que ninguém tenha feito antes. E Marilia Arnaud conseguiu!

Enquanto lia as passagens que Aglaia descreve os efeitos da Coisa, como ela chama, podia ver nitidamente um pássaro dentro de seu corpo roçando as asas em suas costelas, bicando seu coração. No começo no livro, essa imagem não é tão poderosa, mas ao pensar nesse aspecto do livro em retrospectiva fica claro o crescimento desse pássaro, que está ali como um ovo fossilizado e logo choca, crescendo, crescendo, crescendo, até que não haja mais espaço no corpo de Aglaia, e a rompa, destroçando-a.

O que Aglaia não enxerga dentro de Thalie é justamente o que não existe: Thalie tem o privilégio de não ser morada de um pássaro secreto. Não há nada de errado nisso, pelo contrário, mas para Aglaia é toda a injustiça do mundo.

Gostei bastante da cena em que Aglaia está na clínica e observa outra paciente que se senta sempre de frente para a parede e escreve com o dedo algo ali, o que Aglaia percebe ser “A Coisa” repetidamente. Além da descoberta de que ela não era a única a ter a consciência da Coisa, lembrei-me de “o horror, o horror” de Coração das Trevas (Joseph Conrad), citado no começo da obra, o que me elevou a um patamar ainda mais complexo na compreensão da Coisa.

A importância da pesquisa para a compreensão da obra

“Dizem que narrar é um modo de iluminar nossas zonas escuras, as palavras têm o poder de fazer cair o lençol branco das assombrações e escrever é uma forma de se desgarrar de si mesmo e se entregar.”

Como leitora, sou exigente e chata. É muito difícil um livro me agradar do início ao fim, em todos os aspectos, o que não significa que a obra seja ruim – se considero um livro ruim, guardo minhas considerações para mim, prefiro não gerar discussões negativas, elas já são abundantes sem eu ter que fazer nada.

“Quem poderia confirmar que Nossa Senhora tivesse sido aquela retratada pelos escultores e pintores do mundo inteiro? Quem podia garantir que ela não tivesse existido pequena e gorducha, de olhos escuros e cabelos indomáveis?”

Alguns aspectos dessa obra, dois em específico, me incomodaram ao longo da narrativa. O primeiro foi a dramatização dos “motivos adolescentes”: a menina que sofre por não ser bonita, preterida pelo menino que gostava em razão da irmã que é como “Nossa Senhorinha”. Eu pensava: essa fase já é difícil para todos, o estereótipo da menina gorda e desajeitada não deveria acrescentar em nada para esta história. O segundo ponto de desconforto foram os nomes das personagens. Iniciei o livro empolgada por ter a oportunidade de mais uma vez ler um contemporâneo brasileiro, mas frequentemente me esquecia disso durante a leitura e acho que o fato de as personagens não terem nomes comuns para brasileiros auxiliou nesse efeito. Aglaia começa justificando o seu, “Thalie” dá para entender considerando sua origem e é referência a Tália, a outra Graça grega, que somam três com Eufrosina – ou Eufrosine, a outra irmã. Temos também vó Sarita e Heitor e Heleno, esses últimos menos incomuns, também referências gregas. As homenagens são muito coerentes com o contexto do livro, uma vez que o pai da família, Heleno, é ator e o teatro grego tem inegável importância na função. Já “Demian” me pareceu o auge do “abrasileirismo” porque não havia justificativa, cheguei a me indignar.

Porém, o livro todo é construído em referências. “Demian” é uma referência ao livro de Hermann Hesse, de mesmo nome – confesso que isso me escapou facilmente, talvez por não ter lido a obra. Descobri isso assistindo e ouvindo entrevistas com a autora Marilia Arnaud, quando ela tem a oportunidade de explicar (lindamente) a relação da sua personagem e a personagem do autor homenageado em sua obra, quem admira. Também nas entrevistas descobri que esse romance foi desenvolvido inicialmente para um público mais jovem e que sofreu adaptações para se apresentar na forma atual, porque assim exigiu Aglaia, antes Bruna. (Acho muito interessante quando as autoras e autores se propõem a falar do processo de concepção de uma obra. Essa “rebeldia” das personagens é algo tão mágico e cheio de vida que penso ser uma espécie de validador da precisão e sucesso da criação.)

Com certeza, as entrevistas me esclareceram muitos pontos da obra que me pareceram estranhos na leitura e melhoraram a minha experiência.

Para quem se interessar, deixo os links das entrevistas:

Podcast da TAG Livros (Spotify): Clica aqui

TV Senado (Youtube): Clica aqui

Notas sobre o aspecto formal e estilístico da autora

“Os psicotrópicos e sedativos, estou certa disso, acabaram por me entupir de silêncio.” 

Debatendo a obra com colegas e lendo resenhas e comentários por aí, vi que muitas pessoas mencionam o lirismo da narrativa como um dos principais destaques do livro. É inegável que a autora constrói essa história com pleno domínio da linguagem, assertiva e eficiente, única, mas pessoalmente não acho que extrapole o lirismo presente em outras obras brasileiras. Acho, inclusive, que há uma adequação exemplar do que foi feito ao que a obra pedia, a forma servindo à história. Uma amiga comentou comigo: “as últimas páginas são tão confusas!” e eu concordei, acrescentando que, apesar da Aglaia narrar a história depois de muito tempo do acontecido, é muito coerente que aconteça assim, uma vez que a menina Aglaia passou a viver dopada, confusa com a realidade. Isso é lindo e desejável, e, na minha opinião, essencial em uma grande obra. 

Premiações

Prêmio Kindle (2021) – Vencedor

Obras relacionadas / Outras obras da autora

“O pássaro secreto” é o livro que li que mais tem referências. Vou deixar aqui apenas as que penso ter maior importância na conversa intertexto.

Hamlet – Shakespeare (Compre aqui

Otelo – Shakespeare (Compre aqui

Rei Lear – Shakespeare (Compre aqui

Macbeth – Shakespeare (Compre aqui

Demian – Hermann Hesse (Compre aqui)  

Coração das Trevas – Joseph Conrad (Compre aqui

Os miseráveis – Victor Hugo (Compre aqui

Alice no país das maravilhas – Lewis Carroll (Compre aqui)  

Helena – Machado de Assis (Compre aqui)  

Crime e castigo – Dostoiévski (Compre aqui

Obras da autora:

Suíte de Silêncios – Marilia Arnaud (Compre aqui)  

Liturgia do fim – Marilia Arnaud (Compre aqui)  

O pássaro secreto – Marilia Arnaud (Compre aqui)  

Deixo também o link da playlist da TAG Livros no Spotify, que contém algumas músicas referenciadas na obra aqui

Essa edição foi enviada pela Tag Livros (Curadoria) compondo um kit com marcador de páginas, revista do mês e mimo literário. Para se associar e ganhar 30% de desconto na sua primeira caixinha use meu código neste link.  

Leia mais resenhas de livros enviados pelo clube Tag Curadoria aqui.

Leia mais resenhas de livros premiados aqui.

Leia mais resenhas de livros escritos por brasileiros aqui.

___

Gostou do conteúdo? 

Compartilhe nos comentários a sua visão da leitura da obra, me interessa saber!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima